quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

estudos sobre a tradição

deixo que amofine só 
a versão do verso 
ao sol 

palavra contraditória - intransigente

ferina & caninana 

se 
estivéssemos 
em Roma melhor rimaria

embora 
esteja só 

a escapar das transmutações 

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

ao amor os primeiros passos

aprender a amar como um bebê

se apega ao balbucio da palavra inaugural 
engatinhar 

ao amor se agarrar

assim feito ao preferido brinquedo, único 

tocá-lo como quem risca o rascunho
a punho 

lúdica imagem de uma sombra iluminada 

à primeira vista, vez

pisar a terra intocada, primitiva 

amar como quem ensina ao mundo sobre 
a si mesma 

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

deleite

ao abraça-la sinto como se 
uma catedral me cobrisse de aquarela 

à meia-tarde do século XXI 
esfrego as mãos ao rosto das folhas 

há tempos que perdi a arritmia,
o rumo e a melancolia
ainda que ouça o sino atado 
ao pescoço das amuadas taurinas

as carrancas expõe as línguas
o vocábulo me foge, 
ainda que não vos escapasse 
seria o silêncio imperfeito

você deleitosa sob o rosto incolor 
me cega de cores da imaginação 

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

cárcere

a sombra retorna
feito um cão farejador
do seu rastro à sombra 

cuidado, meu amor
há quem se livre da angústia
achando-a tapá-la os olhos

se o próprio tempo
tem o seu cárcere
o que dirá a face de uma memória? 

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

cúmplice

desconfio da minha cúmplice. 

Vallejo e Rimbaud puxam o meu pé
e os mosquitinhos
invadem o meu café, 

manchas de pratos vazios no colchão.

demorei um tempo considerável 
para aprender a escrever o meu nome, 

as outras crianças caligrafavam 
com agilidez e fluência. 

aquela escola era tão catedrática 
que até hoje só sei do seu pórtico. 

eu, que sequer a compreendo além do risco. 

toda vez, toda vez, soletro 
o café ficou severo e frio. 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

arquivo

vento da paisagem
lânguida, a face
despida do amanhã 

restaurada pelo
porta-retrato.

ardor
da noite introvertida
você, o tempo:

memórias cobertas por flores. 

domingo, 4 de dezembro de 2022

poemas movediços ou contradição

o meu silêncio fura o chão. 
há quem suponha que estávamos
enterradas, no calo de um dromedário

eu não digo estarmos contrariadas. 

o suor nos descia a depilar as costas
e a deformação das palavras. 
eu que abro a boca para calar
a sede, derreto o copo de plástico. 

o caju me interrompe o soluço
arenosas imagens, mulheres 
em uma ampulheta às horas gravadas: 

reflito o meu deserto real-imaginário. 

terça-feira, 29 de novembro de 2022

segunda-feira

aguardo no parapeito das sementes 
dos girassóis o rosto da morte 
ou a vida

à segunda 
encontro-a desfalecida
em alguns rostos-vultos avulsos
empapam a minha vista

me enfio no retrovisor
visualizo um rato
ou a performance de um roedor 
a atravessar o caule de uma figueira

me trancafio na roleta de prata 
finjo vestida de gala o meu funeral

que apesar de singelo me cheira 
à morta natureza os meus dedos 
estão exautos 

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

tradução do poema A ficção morte de Sebastião Uchoa Leite

A ficção morte

Penso em meu pequeno fim
Ouvirei zumbidos?
Sugado pela zona de vácuo?
Ou zero-corpo
Polidimensional
Subindo ao teto
Espiando-me de cima
Os outros em torno
Vozes mentalmente exaladas
Dizem ouvir-se um trinado
Muito alto
Sem zumbidos
Mas aí adeus
Morro de susto outra vez
Dentro da morte.

Sebastião Uchoa Leite

.

La ficción muerte

Pienso en mi pequeño final 

Escucharé zumbidos? 

Aspirado por la zona vacía? 

O cero-cuerpo

Polidimensional

Trepando al techo 

Mirándome desde arriba 

Los otros alrededor 

Voces mentalmente exhaladas 

Dicen que escuchan un trino 

Muy alto 

Sin zumbidos 

Pero luego adiós 

Me muero de susto otra vez 

En el interior de la muerte. 

Gyzelle Góes 

terça-feira, 22 de novembro de 2022

sorvete de café

ao símbolo do infinito o 
dedo entrelaçado nas costas 
de um morcego cego

as fotos e os faróis

nós que engatinhamos 
nas escamas de uma pomba
presa na cidade do centro

a praça e uma caderneta

nós que nos sentamos
naquele dia o sol secando
o estrume dos bancos

e tomamos um sorvete de café 
e pistache por cima das pedras

o que eu mais quero deste poema 
é que não derreta sob os meus dedos 

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

antes da boca abrir

antes de abrir a boca
tem a tua pele ocupando 
a minha língua metida 
por entre as sensíveis docas 
esconderijos 

não deixo que o nosso silêncio
se alague no canto do quarto 
me borro no canto do teu lábio
antes de abrir a boca 
tem a tua pele rija 

sábado, 12 de novembro de 2022

corpo-distância

como se não bastasse 
a me esfregar na carne 
a pequenez da distância 

              me estende o teu corpo
              que mal alcanço 

terça-feira, 8 de novembro de 2022

cabine

no meu tropeço 
esbarro rabisco 
as laudas, a face 
de uma moeda enferrujada

enfiada no rastro 
de uma rachadura 
abandono os lares 
sem armadura

você que me fere 
e me trama uma tensão 
suor que se alastra 
e se entranha pelo chão

este espelho 
opaco, rasgo 
esta cicatriz 
sou eu que abro 

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

ama-me a desmemória

ama-me na primeira hora da manhã, 

o instante no qual o céu toca delicado 
as espáduas do Mediterrâneo. 

nesta claridade sonâmbula 
da tarde a faísca urgente da eternidade 
a neblina, o estilhaço. 

ama este lodo em mim cativo, a poeira. 
aquilo o que no esquecimento reluz

ruindo.  

ama-me na escuridão a hora última. 

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

variações de uma língua

três tigres tristonhos lambem 
a leitosa face platônica dos minérios

a roupa despenca dos varais 
finos tecidos tecidos em couro carnais

acena do asfalto um autor amarelado 
o coração para fora no fio da rua

Dante, o cachorro do italiano 
São João dependurado pelo colar 

a lambida dos tigres são variações 
um beijo de travar o tráfego 

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

esse rosto eu não tinha

atraves- 

sou-me

o fato
o gato
a poesia

ficção-poética 

transa, amazônica 
esse rosto eu não tinha 

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

corpus-corpo

é poesia aquilo o que cobiço 
deita no amanhecer do meu umbigo
delírio amarelo te persigo, insisto 

o rosto enrugado uma flor no cio
dois corpus se abrindo, nascer-vínculo 

sábado, 22 de outubro de 2022

horário de pico

o peso dos relógios Sob o cangote
dos cangurus os bolsos a/travessa/
dos

ouvi de fato d'uma foto a imagem 
relevo
re/levo
nunca te toquei para saber

qual o ruído do teu silêncio alcançaria 

mas haveria de ter algum endereço
assim eu ousaria despertá-lo
o sangue

doce, tão doce imaginado 
a insônia dos esquecidos es/correndo

terça-feira, 18 de outubro de 2022

azul e o elo

faço de tudo para ver o pouso 
desta pomba: cidade pobre
atravessa o cinza das grades 
oxidadas oxítonas monóxido 
de carbono azul do seus pelos 
encrespados pela água oxigenada 
um exagero o reflexo do sol no seu braço 

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

mancha gráfica

procrastine o poema e amordace-o 
fruste a função de um poema mordido 

três copos de vidro e um anel de metade
ouro metade metal 
o rosto de um vampiro
no parabrisas estatelado e letal 

anoitece bem antes da noite anoitecer 
os olhos dormentes dos autores 
ainda é cedo para não ceder 

há quem diga que eu dormi de braços
cruzados era apenas o meu modo 
de demonstrar cuidado 

até as roupas de cama envelopados 
poeira até entre as palavras e os quadros 
mas permitimos que as aranhas morassem 

conosco os fios de telefone sem fio 
da vida eu só levo o meu batom 

sábado, 15 de outubro de 2022

humaitá

a palavra que desfila e manca
o rosto de um garçom atrasado 
na mesa sorri e acende o cigarro
devagarinho a chuva teima em nos pisar 

são cenas infames essas as quais você lê
pra mim escorado no topo da cadeira 
mas eu queria te perguntar se 
você não quer dormir 

eu poderia do que ouço do teu peito dançar  
aqui, mas eu não conseguiria, tão baixo 
confesso. deixo as tuas mãos agirem 
sob os meus cadarços 

eu que me declino por poemas por ti
mas você faz que suspende as mangas 
você é uma árvore escondida 
à sombra de uma outra árvore 

e eu não sei da fauna além da suspeita 
qual o signo do teu próximo filho? 
poderíamos ser aqueles que teimaram 
em acordar as ruas aos domingos 

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

cortes/toques

um poema que encena 
a língua
(corta) 

sombra de asas e armadilhas
cessar fogo, queimaram
as páginas! 

do poeta antilírico
escorre um filete
sangue
lágrima
ou suor empírico?

um poema conta-gotas, contra 
um poema mais fino
do que faca de aço fino

um poema disfarce
a face do poeta 
soaria fidedigno 

sábado, 1 de outubro de 2022

os vilões te moram, te miram

este odor, a sua presença
adentra por todos os finos aços
das lâminas por onde se insinuam 
as cabeças, as cobras

você e a feição de uma fera
sem arbítrio, uma rosa carnuda 
o meu gesto delírico, quem te assiste
acender uma vela e os olhos afiar 

quem te mira, quem te viu rastejar 
mas eu que incorporo o seu rastro 
imagino que seja o seu rosto - um astro 
projeto de uma sombra a se dissipar 

domingo, 25 de setembro de 2022

da varanda do seminário

vez ou outra vejo o meu gato
da janela se espreguiçar
eu penso
além de olhar
a vida apressada 

dos seus olhos
o desejo de saltar

ele me faz de aperitivo 
mal nos despedimos
e o convido para jantar

antes corro 
ao toilette 
e ela me escuta mijar

o que há 
de menos ou mais? marginal
visto um vestido vulgar
em um dia vulgar 

armados são teus olhos 
me lambendo 
é a primeira vez 
que não sinto que vou me jogar 

sábado, 17 de setembro de 2022

poesia às horas insones

trouxe
-nos 
a mim de um sonho 
arrancada
 
(vim 
de uma vida passada)

e acabei escapando por um ruído 

dos dedos brutos de dentro
da realidade,

houvera uma vez aquele "menino que 
carregava água na peneira" a 
-nos 
trazer 
o sol de bandeja 

eu

que pouco acordo 
ainda que tenha 
arregalado os olhos 
estreito o corpo de sono e "aspas" 

(o teu rosto 
que pouco acorda)

ainda que tenha 
os olhos esticados 
espreguiça
-me 
o sorriso- 
às madrugadas 

terça-feira, 13 de setembro de 2022

adeus à linguagem

você me diz: digamos 
adeus à linguagem
pregada à língua
tão estranha 

você que revela ser 
o quadro à parede
o retrato da dor à cruz
cruzo a sua entranha 

você que o silêncio me apanha à mão: 
como prefere que eu o traduza?

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

uma fotografia

Fora delírio. Uma inofensiva palavra
a palpitar no pulmão seco de um rio
às margens, a memória de uma imagem
supensa como um corpo enforcado. 

O seu rosto. Uma ofensa às tardes
em que o sol se esconde, você 
que surge feito uma única bicicleta
em uma ciclovia deserta, desabitado. 

Você. Que se esquiva das palavras,
das imagens, desprevenido. Como se fosse 
breve o tempo dentro de um poema,
porventura um delirar desinibido. 

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

A noite

Transpasso uma longíssima noite
de inverno, com um brinco de vidro
dependurado, você me diz:

Ao atravessar olhe para os lados
e estende os pulsos, sucinta.

Você me dedica um haicai 
na palma da mão, me encolhe
o sorriso. 

O seu rosto me parece uma lâmpada 
que cai e reacende. A noite. 

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

sobrevoar

longe são seus olhos
que se debatem e perambulam 
se avistam a poesia dos meus, tácitos 

paralizam se avizinhados 
insones e distanciados 
são seus olhos 
aqueles os quais primeiro se calam 

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

palmeiras

veja só como discutem os seus pares
unindo os punhos e soando socos
conjugados ao ato

tira-lhes o dom 
de fazer poemas
e só lhes resta o pôr de um sol cansado

você que os versos tem contado  
as palmas e o calor das bananeiras
olha às minhas veias como quem suspeita: 

ao som de uma palmeira à espreita 
percorre da seiva este silêncio sussurrado 

sábado, 13 de agosto de 2022

com você eu sinto o desejo

com você eu sinto o desejo
de nunca terminar um poema
de nunca começar um poema

o seu corpo de estátua ao meu lado:
por você eu deserdaria a palavra
para habitar o silêncio 

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

o que fizemos das nossas delicadezas

Adquira o seu exemplar da 2ª edição comemorativa de "O que fizemos das nossas delicadezas" no site da Editora Folheando 

https://www.editorafolheando.com.br/pd-8b3ac4-o-que-fizemos-das-nossas-delicadezas.html?ct=&p=1&s=1

terça-feira, 9 de agosto de 2022

rio das pedras

há uma profundeza
no teu passo
petrificando os meus 
quando trepido ao teu lado

apenas quando cala
o rosto em meio à fala
o teu suspiro esbarra
nas ruas que atravessamos

por você eu descobriria 
o avesso das pedras 

belo o jeito como soamos sorrisos

quando o sol nos coroa 
pergunto a imagem que a gente fazia
nos troncos descontraídos 
da pele raiando as raízes 

a marca do teu rosto rastreando
as ramagens louras
e os brotos corando
o verdinho queimando as pálpebras

coisas em silêncio me pergunta
ensaia uma nova balada
arquivo as veias da poesia
ao teu esboço arqueada

dizendo coisas da boca em bamba 
mais um enredo ao nosso gole
entramos no samba

eu me pergunto da cena que a gente faria
quando o amor se fizesse brilhar
mais do que o próprio reflexo
de Narciso no rio

éramos bonitos e a paisagem um brinco 
falar da natureza é transformar
o que fazíamos encolhidos
raio de versos um poema desprevenido

domingo, 7 de agosto de 2022

pedra da lapidação

                À Foed Castro Chamma 

o exercício de te amar
esculpir 

em uma pedra 
um colar

do penhasco

como quem põe as impressões 
do amor
em uma rocha

nos atrevamos 
ao exercício das lapidações 

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

antes de viver o sonho o sítio

I.

antes de vivir el sueño el sitio

los pájaros 
picotean y sorben 
nuestra casa
soledades 
en la puerta 

pensé que nunca nos ubicaríamos

II. 

antes de morar o sono o sítio

os pássaros
bicam e bebericam 
a nossa casa 
solidões 
na porta 

achei que nunca nos situaríamos 

terça-feira, 2 de agosto de 2022

água com açúcar

a destreza do teu gesto
ao rodopiar os dedos 
pela borda de um cigarro

o teu pigarro flácido 
noto o teu cisco se desorientar 
no busto de um cobertor 

dentro de uma tarde cinza 
você me sinaliza 
vamos à casa 
dar de beber à sede aos beija-flores 

sábado, 30 de julho de 2022

tudo o que leio teu é como se fosse a primeira mordida

toda vez é como se 
eu não te conhecesse

você é um completo estranho 

você se apaga 
você é uma notícia inédita 
dentro do televisor  

te assisto e você parece aquelas
caixas dentro de caixas
dentro de caixas

[vazio]

o que você deixou 

sexta-feira, 29 de julho de 2022

para onde vão os trens, irmão?

uma ausência 
dependurada 
do quarto 
andar.

reparo
a grade da janela 
segura.

quem 
de nós? 

escapamos
por um fio
de arame. 

você 
tem medo 
e por que 
não me olha? 

onde 
você 
quer que eu me esconda? 

minha angústia de quatro patas protegida por quatro paredes tem quatro meses 

que você não me diz
para onde você pensa que vai? 

enxaqueca

do lado direito da minha cabeça
você latejando 

não, não na minha cama 
nunca te deixei dormir 

e de modo algum do lado esquerdo 
onde se reserva vaga para o coração 

na memória não se pode confiar 
ela nos dá golpes de estiletes

me diagnosticaram com enxaqueca
que nome esdrúxulo

olha só você 
enfiado nos meus sentimentos 

me dando chá de quem sabe um sumiço
eu adoraria tomá-lo

quem sabe um sono de anos
você dentro de mim pulsando

olha só eu 
nem me lembro 
quando foi que eu te esqueci 

terça-feira, 26 de julho de 2022

colheita

vejamos nossa solidão
aqui do lastro desta nuvem 

as lápides com os nomes
ilustrados 
os nossos 
sobrenomes

vejamos que não passou
aquilo o que chamamos de saudade

apenas uma folha se desprendeu
mais uma vez 
o adeus 

você me pronuncia 
e eu o acolho 

domingo, 24 de julho de 2022

cactos e poemas

quase nada se limitou ao tempo, a não ser
ele mesmo

percebamos que nos cactos persiste 
a delicadeza pronunciada que desprezamos,
ou fora dela mesma 
repreendida 

embora hemos de colher o mel daquela fruta
esquisita, e de inflingir o instinto 

nossas mãos, ainda que enluvadas 
por espinhos, hão de farejar afagos - 

os apáticos nos impuseram a prova 

sexta-feira, 22 de julho de 2022

seria o meu fim

uma cerveja no freezer
o meu frenesi 
não cessa

ele apagou o meu número 
eu apaguei o seu rosto

na areia
de rostos
identificáveis

se sou eu quem fiz
dos grãos 
das costas
das costas

quem dera se eu tivesse o teu não

quinta-feira, 14 de julho de 2022

encontro um astro em teu umbigo

que se revele o universo 
encontrei-o em teu umbigo

o teu rosto
posicionado ao sol
feito uma flor sedenta

é completo degelo, árduo 
escuto o teu chamado 

dura uma eternidade 

e nada mais precisaria ser ouvido 
a não ser o eco 
teu umbigo 

sábado, 9 de julho de 2022

louva a Deus

às noites de sexta 
geme um louva a Deus 
os seus pecados
da janela

eu o agrido com o meu silêncio
baforando meu Minister 
é tão superficial
aqui de cima
olhar o Cristo
e dizer eu sou mais uma
que não sai dos seus pés

o louva a Deus 
bicho gozado 
todo melodramático 
se despede com as asas 

quem sabe seja ele quem 
seja o primeiro a encontrar 
o paraíso 

quinta-feira, 7 de julho de 2022

terça-feira, 5 de julho de 2022

um corpo só

escrevo-te 
sob a luz do quarto
translúcido
o teu rosto
sob o meu quadril

você me esbarra 
é como se um copo de vidro
se estatelasse 

a tua voz
coisa igual
só o silêncio
das horas de pico

você se posiciona
ao meu lado
e eu sempre só
chamo-te 
como quem se estatela

segunda-feira, 4 de julho de 2022

ternura


as margens dos teus lábios
traçar bordados

a lua terna 
no seio da noite 

teus olhos
tão mencionados 

inauguram a manhã 

quinta-feira, 30 de junho de 2022

33mm

imagina você saindo 
na hora do lanche
para assistirmos àquele filme francês 
eu vendo a sua despedida

e eu esperando você 
fechar as portas
para sairmos 
na semana seguinte de mãos trancadas 

o barulho que você faz 
com as chaves parece o meu coração 
aqui dentro e ao lado de fora 

eu na vitrine te vendo vender com desconto 
outras despedidas 

e você lá do outro lado
atravessando para comprar um cigarro

imagina o nosso filme queimando
dentro de uma máquina
o café lento 

o amor é um roteiro que ninguém escreveu 

segunda-feira, 27 de junho de 2022

nuestras

atravessemos 
o sol da madrugada
portando flores 
prostadas em telas
e cores imaginadas

revelemo-nos 

anúncios
nas paredes das bancas:

o dia há sempre de se reconciliar 

domingo, 26 de junho de 2022

folias

atravessemos 
o fogo das pupilas
pularemos o inferno
o inverso, o chão, a ferida 

e que nos sobre 
aquela palavra 
que mesmo escassa 
escancare-nos, 

que nos atravesse... 

terça-feira, 21 de junho de 2022

tudo o que leio teu é como se 
fosse a primeira mordida 

se tivéssemos tido a história do beijo
mas eu te chamei para jantar 
à luz dos olhos

nós comemos berinjelas 
e poderíamos jurar que os peixes 
morrem 

e se tornam arroxeadas
as suas barbatanas

há quanto tempo você não faz as malas? 

toda vez é como se 
eu não te conhecesse

você é um completo estranho 

você se apaga 
você é uma notícia inédita 
dentro do televisor  

te vejo e você parece aquelas
caixas dentro de caixas
dentro de caixas
[vazio]
o que você deixou 

segunda-feira, 20 de junho de 2022

ocupações

ocupo os espaços que você deixou 
na companhia de um gato

quando a noite vibra 
como um telefone debaixo do colchão 

eu abro a porta devagarinho
e espio se você deixou 
algo além deste quarto 

alguma sinal do adeus 

assim seria mais simples 
ocupar-me de outra distração

a não ser aquela de 
ocupar os espaços que você deixou 

quarta-feira, 15 de junho de 2022

às margens plácidas

estou repleta de ternura 
como se por ocaso 

tivessem posto a minha língua
para deitar lado a lado à tua

todas as revoluções
e poemas já foram bradados 

mas às margens estejamos 
alinhados a minha lingua à tua 

domingo, 12 de junho de 2022

saberei a hora do adeus dizer-te

saberei a hora de te dizer adeus

embora tenha assinalado 
a manhã do dia 
em que estávamos 
marcados para nos casar 

saberei a hora e te digo adeus 

e você me contempla
com um soluço
de quem está confuso 
no centro no meio da faixa de bicicletas

saberei a hora do adeus 

e sem carteira me dirijo à porta 
com a delicadeza de uma pena
presa a uma flecha 

você se dá conta de que lançou 
de mão a brecha para se desvencilhar 

quinta-feira, 9 de junho de 2022

lareira

amar 
é como sentar-se 
à lareira 

contenta-te com a 
inquieta e deformada 
chama-
me

à frente 
dos olhos 

terça-feira, 7 de junho de 2022

ainda que se acendam

quero em teu corpo 
esfregar o resto da minha fraqueza 

em teu ombro 
estender para secar
as olheiras contornam o meu berço 

no dia em que um cometa roçou
em outro cometa
não por acaso

as noites tem sido mais vermelhas 

nunca mais se viu uma noite 
apagar-se por inteira

como quando partiste 

em outro cometa rente 
ao teu rastro 

            fosfórico 
ainda que se acendam todos os olhos

sábado, 4 de junho de 2022

o desterro

neste rio 
mora um nome: 
saudade 

estende 
os braços 

neste rio
deságua 
o desterro

a seca
o riso

algum lugar no qual desabitamos 

quarta-feira, 1 de junho de 2022

o amor é um cheiro que ficou

você retorna aos relatos dos teus dias
imaginários a desconhecidos 
papéis softs

você escapa das minhas unhas
como um cão das portas dos petshops 

e eu volto às ideias imaginadas 
de que as cartas, as extraviadas 
...

você se lembra 
de quando 
eu subi 
em você 
aquela rua 

que eu chamo de corpo e de saudade

eu sou uma indefesa escritora
em minha defesa 

aguardo a minha vez às vezes 
o amor é um cheiro que ficou para trás 

terça-feira, 31 de maio de 2022

ferrugem

a semelhança 
o susto 
o surto

o teu sorriso retorcido 
na mesa da sala 
almoçando 
parafusos 

ferro fere e sangue 
difusos 

você se confunde e diz eu te - 
detesto estas tuas pausas 
rodeios 

- Você me ama ou só não me suporta? 

segunda-feira, 30 de maio de 2022

testículos

você que surge 
feito estalinhos
lançados dentro 
de um quarto pequenino 

e se abre 
como um guarda-chuva
dentro de uma casa

que azar 
o teu destino 
de cão-guia 
perdido 

você diante 
de um espelho 
rachado
no meio da rua 
debaixo de um andaime

os gatos 
nem te dão bola 
isso seria chutar
cachorro-morto

mas 
no teu rosto 
ainda se vê 
dentes
canino

olhe para o teu 
próprio rabo 
e veja só!

ainda não ceifaram 
os teus testículos

quarta-feira, 25 de maio de 2022

corro até nós

trocaram as lâmpadas do meu bairro
por cores frias 
olho para a rua e

estamos tão distantes 
que a própria distância me parece

mais próxima

como terminar um poema sem precisar
correr de mim

de quem nós estávamos falando
eu te adoro mas porque você 
é sempre tão incompreensível
comigo

e joga os jornais ao chão
e levanta da mesa 
e se joga no mar 

eu corto as cebolas maiores
do que cubos de gelo 
e esqueço o fogo alto

acendo mais um cigarro
mastigo uma bala e assim 
como quem termina um poema 

corro até nós 

terça-feira, 24 de maio de 2022

fruto

é que tens um coração 
de polpa bicada 

exposta a tua casca 
brilha feito os olhos 
dos bichos ao anoitecer 

de ti envolta 
os pássaros brincam 
de se esconder

domingo, 22 de maio de 2022

a imaginação e as sombras

você diz que me ama 
e eu te envio

um poema 
uma fotografia

no poema a figura 
de uma lua ensaguentada 
e a tua sombra

no silêncio as ruínas 
de uma casa em ruínas 

o teu sonho ainda fresco
à nossa porta imaginada 

sábado, 14 de maio de 2022

dormência

não discernir 
por onde atravessa 
a língua que se alvorece 

mas aperceber 
que além 
deste horizonte ocioso e áspero 

nosso beijo adormece 

sexta-feira, 13 de maio de 2022

as marés

hemos de iluminar a luz 
da primeira manhã 

ancorada ao teu ouvido 
lunetas e uma velha embarcação

no casco riscaram 
dois nomes dentro de um só coração

não esquecer o sonho 
é a véspera

as marés 
nos rostos 
de quem fareja 

há da luz da manhã 
surgir como um porto 

terça-feira, 3 de maio de 2022

escreva o que deve ser esquecido

se risque de todos os possíveis mapas 
afogue o tesouro da tua memória

se agarre à lembrança 
de que em algum lugar 
no fundo da terra 

o teu coração ainda fará soluços 

mesmo que as mãos 
no ato do sepultamento solenes 
estejam para sempre trancafiadas

quinta-feira, 28 de abril de 2022

assalto

o mundo 
me exige disfarces

desde à infância
aos trapos, os meus 
nervos foram baleados 

colo os ouvidos às portas
nos trincos, os alarmes

na joalheria 
uma rave
ou um assalto

era para eu ter acordado 

que corresse 
dos roubos
da minha sombra

haveríamos 
de produzir qual retrato 

se antes 
do sol se revelar

algo 
de brilho se escondesse? 

sábado, 23 de abril de 2022

o nome das cores distanciadas

o imenso não tem nome
ele se desloca para o fundo 
e o fora de nós 

o que se nomeia 
é a cor do horizonte
numa espécie de passatempo 
a fim de desiludir a solidão

este feto imaginado que se chama linguagem 

quinta-feira, 21 de abril de 2022

o dia termina e nós famigerados

abraçar o Sol
e comer nas tuas mãos
o miolo dos pães 

o teu sapato polido, a tua fala
tão cintilante quanto
você e eu
o poema em pedacinhos 

segunda-feira, 18 de abril de 2022

quinta-feira, 14 de abril de 2022

me abraça 

e esquece

que o tempo passa 

herdamos a tua falta

não esqueçamos do silêncio
que se fez sob as águas, 
os pisos, dos teus pés lívidos
dormentes, os teus olhos melados
pelo ardor da manhã de sábado 

deste silêncio nos vestidos 
no rosto nas portas,
desta paz que não impede 
senão a tua volta, 
o rosto de uma mãe saudosa 

há na casa o ermo que ocasionaste-nos 

domingo, 10 de abril de 2022

há algo neste canto

há algo de firme 
nos seus olhos de canário 
e de interesse 

pela primeira vez 
não o perdemos

há algo de digno nesta ausência 

segunda-feira, 4 de abril de 2022

baú de lágrimas

não há nada mais triste 
do que ver uma mãe arrumando baús 
com as roupas do filho 
que acabou de morrer 

não há nada mais triste
do que dobrar 
as mangas 
os filhos mortos 
os panos mortos 

não há nada mais triste
do que um guarda-roupas
sem roupas, desnudo 
imaginar a frieza do túmulo

uma lágrima molha a tua gola 
uma lágrima borra o teu gorro
uma lágrima veste o silêncio
que cobre o teu corpo 

sábado, 2 de abril de 2022

o mundo se cala

não há caso em chorar 
e beber as próprias lágrimas 
em um cálice 
ou no dedo 

não há problema em intervir 
o poema para escrever 
outro

e calar o mundo 
ou a máquina de lavar
amanhã sairemos 
com a mesma roupa pendurada 
nos braços da maçaneta

não há desculpa a tua camiseta 
amassada como sempre esteve 
vermelha debaixo dos meus livros
como um bolo de rolo 
de linhas desalinhadas

que beleza quando os fantasmas 
se sentam bem na hora 
exata em que você escreve 
um poema 
e o mundo se cala 

quinta-feira, 31 de março de 2022

confusões

se confunde comigo 
e eu te mostro o que é o perplexo 

se confunde sereno 
o Zéfiro que farfalha 
e se arrasta dos meus olhos 

aproxima-te e sente límpidas as minhas
mãos

quero te dizer verdades 
que até eu desconfio 

(até o Egito caminharíamos 
medir se o tamanho do amor
mede e alcança as pirâmides
ou o torso dos dromedálios) 

quero te acolher e pedir vamos entre 
mesmo que tenhamos 
as chaves
ou as portas

possivelmente 
as pernas nos confundido 

sexta-feira, 25 de março de 2022

como quem espera do tempo

é violento o teu amor
e as bananas em cima da mesa
esquecidas, mornas 
hoje o dia estava marrom
o teu beijo de um gesto gelado
o teu peito quieto
eu achei que você acordaria 
antes de mim
nos trazendo o café
na cama o nosso gato
na mesa as bananas 
em cima do meu rosto a lágrima
fui dormir depois de você
achei que você me acordaria 
as bananas, a mesa 
tudo quieto te aguarda 

como quem espera do tempo uma pausa 

segunda-feira, 21 de março de 2022

amarelo eternidade

a borboleta ensaia a morte 
amarela como o seu corpo de pétala 
os meus versos vieram 
à vida prematura 
o teu rosto lívido 
como quem dorme pela última vez

o sono dos puros 
a cor da sua íris o mel descalso 
a altura das árvores a teoria das cordas 

maiores do que os nossos olhos
nesta manhã eu acordei 
e você ainda sonhava 
há delicadeza no simples gesto
de paralizar a eternidade no corpo 

sexta-feira, 18 de março de 2022

meu corpo fere a carne

arrasto o fogo

a muito que os meus olhos
caíram no infeliz desejo tátil

há quem almeje dos abacaxis
o melaço, a fruta descascada

eu, fuço a feira mais distante 
me furo, te furto com a minha saudade

lanço a lingua às aftas 

meu corpo é quem fere primeiro a carne 

sábado, 12 de março de 2022

lastro

neste dia luminoso guardo 
o cheiro das tuas mãos

a memória o que é 
se não um artifício carbonizado 

e eu que zelo 
pelo teu nome 
à margem 
o meu corpo de vela 
e eu que não durmo 
a duas vidas velo o teu lastro 

o que somos nós 
se não a suspeita de uma naufrágil 

segunda-feira, 7 de março de 2022

Dissolução

transitar entre as ruínas, 
dissolver 
a ideia do mal
a carne presa às unhas

dilucidar 
os dentes rígidos
e se espantar, 
a face lívida

viver do espanto a beleza 
ainda ter
ter ainda 
alguma expressão 

fronte a face 

fraturar 
e como a fratura se aperceber
e mesmo assim
mesmo assim 
a falta, 

não ser desculpa para a severidade 

os ossos presos 
às unhas e as carnes 

transitam entre as ruínas, se solvem 

sábado, 5 de março de 2022

Costela (2014)

Cuida bem do meu excesso de paranoia
dos quatro mil sóis que acharei 
enterrados em seus cabelos
das metáforas que forem criadas 
só para eu te fazer único
não só em meu coração
mas também nas minhas poesias. 

Cuide das minhas e suas futuras rimas!
porque só sei fazer versos repetitivos 
nessa vida, porque escrevo 
com o meu sangue, a língua, as tripas
cuida da minha falta de tamanho 
não só por ser pequena
o mundo é grande, me engole. 

Devore o mistério a boca 
só não me cuspa, degusta
faça dos meus restos a sua ideologia, 
sua culpa. E eu te dedicarei a Lua 
escondida entrelinhas da minha costela
só para que te assista dormir em cima dela.  

quinta-feira, 3 de março de 2022

"Esta noite eu quero ir até você porque meu coração pesa e tudo parece tão difícil de viver. Hoje à noite eu me pergunto o que você está fazendo, onde você está e o que você imagina."

— Albert Camus em carta a Maria Casarès (1944), no livro "Correspondence [1944–1959]". Paris: Gallimard, 2017.


terça-feira, 1 de março de 2022

orla

entrevejo o seu fronte marinho 
repousado no vidro tépido 
dos meus olhos salinos 

que paisagem chovediça 
você abandonou 
sob a minha janela! 
.

mas não faz frio
não me esbraseia 
o que eu sinto neste instante 
é o aroma das orlas 

o seu corpo rolando 
abraçado à areia do meu bojo 
os pés eufóricos, vermelho 
o aspecto da orla do seu beijo 

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

silêncio das palavras

eu que sou 
uma recém nascida

desejo dormir 
no pranto 
do teu colo

quente como são
os quartos pequenos 
de grandes cidades 

e o meu amor
que ainda é tão verde

quero te dar 
sem que percebas
que nascer 
é este silêncio das palavras 

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

braços abertos

vamos cair na gandaia, 
                   na mesmice
vamos abrir os braços,
amor

e eu que herdei 
a sua camiseta 
atrás da cama 
guardo um labirinto
 
vermelha desboto

atravessamos 
o pontal
sapatos nas mãos
corredor polonês
caipiSol nos acena 

samba açaí mato queimando

você levanta da cama eu interrompo
o meu ronco a solidão

nós dois dentro de um cisne 
vendo a despedida
             anuncio 

pedalinho, coquinho gelado 
Cristo assiste ao nosso beijo e pisca

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

fundaremos um país

I. 
dai-me uma solidão mais lúcida, 

porque te olho de canto
e tudo me parece turvo
e silencioso

me rói o fundo das pálpebras 
e o raso do mundo 
porque me amansa 
a rudeza das tuas planícies

II.
bem-vinda ao precipício 
afiado do teu 
corpo, 

cavo a minha bandeira 
pátria amada! 

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

mapear

I. 
confidencia-me a vereda 
         a planície dos vôos

você me aponta o peso 
leve das linhas do destino

o susto de repousar em suas mãos

II.

não me contento 
com os mapas
onde fomos é além

aquele lugar 
que chamamos de escudo

escolho as suas mãos 
            e me encolho

num lugar de pouso
na aresta de uma cidade 
ainda não delimitada

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

haraquiri

enquanto corto a cebola penso 
e se esta faca escapasse
das minhas mãos

e atingisse o meu ventre 

corto a cebola e se ela 
não me fizessem chorar 
choro sem culpá-la

sem que tenha atingido o perdão 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Tarcísio

a fonte da saudade, Tarcísio
jorra às manhãs de domingo

você nubla as praças
cor do tom dos Sóis
você colore as placas
com as tuas lentes adormecidas 

e o que fizemos das nossas miudezas

se o estado da nossa alegria
cresce à medida do assombro 
e da melancolia, os lençóis 

te assisto
debater
as asas dos pombos
neste lugar marcado
para nos lançarmos
das muretas

ouço uma borboleta no teu umbigo 

dou luz à tua presença

o teu rosto 
no meu poema
faíscas e esboço

você com o teu jeito 
de desbravar o meu pescoço

nos nós de Sagitário e Escorpião 

e o teu dedo solto

quem diria que o anel, o teu mel
cairiam tão fantasmagóricos

teu gozo cheiro de lágrima 

as palavras que eu insisto
em não saber dizer por onde

nos discerniriam, improvisar 
o teu rosto o meu umbigo

dou luz à tua presença 

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

se ainda causa chaga

a minha rua o teu cheiro ainda guarda 
o peso das tuas mãos 

olho para o cristo vermelho
e vejo os teus olhos da chegada

você trocou de lar
e nem o meu rosto causa chaga 

e eu o que faço com o teu rastro
na minha entrada? 

Terráqueos

fotossíntese, lâmina, acne, transformidade, cabide pequeno e lacre em caixa de papelão, transtorno pré-consultado e o diagnóstico de uma aparente falta de tudo

mas talvez seja o excesso talvez o avanço dos carros indique a hora de atravessar

linhas em sincronia na blusa de manga comprida faixa de pedestre quanto custa não passar faz tanto tempo que não chupo uma fruta

esse buraco na terra, o efeito da nuvem sobre a lua cheia, completinha. mas é que o pão veio duro, o troco inteiro, a alça do saco arrebenta mesmo sem peso, sim o buraco é fundo, não posso ver

as armações foram compradas em 5x sem juros o blecaute não teme as lentes a prova de ver além é mais do que esticar o pescoço tira os óculos para ver o tom do céu não nítido

alegoria para o alvoroço melancólicos dos pombos dessa cidade indefinível

é que basta de descrições hipotéticas do que seria eu e você ninguém é tão completo assim, não tento argumentar, isso é passado a gente marcha e murcha e mancha de sangue estendida no horário de

volta para casa

celulose, catarro na garganta parecendo fala estancada, me contenho tanto que se quiser nem existo. deixo escapar o suspiro o símbolo a prosa ofereço humilde sem valor de devoção

me sobra perplexo espasmo da completude de estarmos habituados ao chão


terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

micélio

o teu líquido em meu rosto ainda vívido, rígido
forma a língua pegajosa dos segredos

revelo o meu corpo ereto que te agride 
curvas, gentil, o rosto
rasgando as águas

afundo;
suturo 

sussurro "serei tua!", até o próximo regresso! 

o mar que nunca toca a mesma margem
sem a saudade 

que seria a palavra entorno do teu braço? 

o cheiro de homem molhado

você deixou um espaço 
na estante 

o cheiro de homem molhado
na toalha

dentro do quarto o forno
o ventilador
queimou 

você deixou um espaço
dentro do meu espaço 

o cheiro de homem molhado
nos olhos

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

forrozear

a tua ausência
se enche de voos rasantes 

lápides constróem 
o mapa da cidade

do topo o teu coração
coberto pelo Sol lamparina 
refletido na Lagoa 

o teu rosto 
pedra de lodo 
escorado na rebentação 

quero ficar no teu corpo 
como quem dança forró 

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

o teu corpo - 

monumento do Maracanã
em dia de clássico, 

entre dois times amigos
as pernas nos saltam das pernas 

que eu aliso feito
um cabelo molhado de beijos, 

fonte da saudade
atravessada entre a Lagoa - 
teu rosto dormente
e o meu
e o nosso bairro 

mas amanhã é terça 
e já estou a ensaiar 
com que braços a tua falta 
hei de embarcar 

sábado, 15 de janeiro de 2022

sítios

abro-lhe as pálpebras 
com o meu calcanhar, 

piso no calo da tua voz
meu bezerro, acanhado

você me olha com o rosto
de uma ruína 
dentro de uma fauna, 

e volto a ti cochilar 
entre nós o amar 
é uma casa na primavera. 

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

pungente

a ausência 
como um pingente 
que caiu na areia 
durante um dia excessivo de praia 

você chega em casa 
insolar e o colar ainda está 
dependurado você não a sente 
mas a ausência está prestes 
a te enforcar 

talvez algum dia você 
olhe para baixo 
e veja que sempre esteve ali 
antes mesmo da queda 

antes da areia, antes da prata... 
do pescoço, antes da falta 

foguete

querer a ti é lamber 
o semblante 
da palavra 

como uma criança no verão
encara o próprio picolé,
eu te deixo escorrer 
até a próxima costa. 

na estação das luzes 
eu te via feito um foguete,

quem o visse
desarmando a boca 
daqueles big bangs não duvidaria,

e dos artifícios da língua. 

sábado, 8 de janeiro de 2022

cães nas rodovias

éramos dois cães 
encolhidos nas rodoviárias 
às margens do silêncio
causado pelo céu e a sua alvorada 

de tanto azul o seu olhar se fez euforia 
e do choro se faz a face do dia 

do amor se fez a mão cautelosa 
estendida - assim que chegam 
as partidas, sob as cabeças - a carícia 

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

mediterrâneo

às noites 
estiro o teu nome 
no sal do mediterrâneo

ao pé de uma ternura de pólvora, 

me espanta que as retinas 
das constelações estejam tão discretas 
diante da festa quieta 
que faz o teu coração. 

cismo que o trovão 
possa ferir o teu sono de pedra 

nuestras garras galopam 
no regaço da areia deserta, 

às manhãs 
estendo o teu nome
no néctar das minhas quimeras. 

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

você usa a pedra como um brinco.

há muito que os poetas 
e depois os pintores 
e os guitarristas 
arrancam as orelhas

procrio a emergência do choro 
quero as palavras pendentes 
desde que topei com o meu cordão 
vim de um útero de algodão 
o mundo também me dói, Hilda

mas e o meu coração
quem você acha que o carregaria
envolta do pescoço feito pingente 
há quem diga que a gente 
foi feito para ornamentar 

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

somos da era em que a saudade se chama daqui ouço a tua pulsação

você me pergunta 
gotejando se devemos 
sustentar duas paisagens
ao mesmo tempo

eu imagino os teus olhos
mais e mais foscos
e a tua pupila em busca
da frase pausada 
em minhas mãos 

eu me atrevo a ligar a televisão
não quero que os vizinhos nos ouçam 

me permito 
caçar uma palavra 
a qual não exista ainda
sentido além de senti-la

crio o nosso cenário 
duas janelas se mirando 
da vista de um só coração 

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

atrairnos

tive de te olhar além dos olhos 
os teus de corvo lírico
fisgam lástimas
             roem 

os meus que guardam
o semblante do cheiro
de girassóis dentro
                      de um diário 

nós que somos menor distância 
entre dois corpos 
          que se traem