sábado, 24 de maio de 2014

As cores anunciaram nossa despedida

Quando eu toquei no papel alvo, gélido, pálido, não tive coragem de dizer o que pensei a manhã inteira deitada sobre a cama de solteira, revirei-me durante a madrugada com toda a intensão de escrever para você aquilo que a boca borrada de batom ameixa hesitou. Não foi covardia, foram seus olhos despidos, decotados, que me fizeram puritana. Quando eu pisei em seu coração movediço, soube que naquele instante eu estaria perdida, não só em você, também no vazio que me desconforta e acolhe a plenos braços nus. Dê-me alguns instantes para remoer a poesia dos seus ombros ternos, sua superfície arrepiada, morna. Deixe-me deitar mais alguns instantes no leito exausto que são suas pernas bambas, porque já não me cabe essa cama, porque já não sou mais solteira, porque já estou viúva. Você vai viajar daqui a algumas horas para capitais de outros quadris e eu terei que sepultá-lo em terreno baldio pois não sobrará hectare de tanta dor ocupando espaço. Não posso mais escrever-te.

Quando eu decidi colocar no papel que eu te queria mais uma noite,
o entardecer ofereceu-me uma explosão de cores no céu,
era um arco-íris anunciando que eu te esqueceria.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Fragmentos

Cansada, exposta, fútil
Procurando um caminho que não seja
Tão sem rumo
Porque de perdida já basta a esperança
Falidos eu já tenho uns sonhos jogados
Para debaixo do sofá de derrotas
E só me resta o resto
Falta-me
Eu estou em falta
Vende-se a criança adormecida
Desiludida pelo cansaço
Exposta
Muito fútil

O corpo já não sustenta a alma
A qual está desenganada
Esse mesmo corpo é caixa falsa
De um monumento vazio
Composto por carne e sentimento
Sinto muito
Eu não sinto nada

sábado, 17 de maio de 2014

Seu sangue é vermelho impuro

Traço-te na mesa, no beco, na cama
Com a ponta fina da minha caneta
Transformo suas digitais de rugas
Em linhas cansadas
Pairadas no branco
E você não reclama a cópia que faço de ti
Pois sabe que são seus parágrafos que me traçam

Invoco-te nas minhas poesias
Coloco a sua identidade nas linhas obedientes
Desse diário matinal
Que é o meu corpo vulcânico
A minha língua te recita toda noite de eclipse
Nosso leito é tão vulgar

Suas cores tão exatas não existem na aquarela
Por isso não te pinto
Deixo-te sem cor, nu, translúcido
Só para te enquadrar melhor na tela

Esse amor tão fragil
Marginal e vanguardista
Eu inventei para nós dois
Por intermédio de meus versos artistas

Desenho o seu esboço como tatuagem na areia
O mar se revolta
E te rouba
Acho que você nunca será meu, Plebeu
Seu sangue é impuro
E a minha caneta é azul

terça-feira, 13 de maio de 2014

O sol permanece mais esperançoso do que eu

Escrevo pensando em você, Humberto, ou seria Umberto? Ou será ilusão?

O dia cheirava a jasmins, ambulantes e tragédia, só o sol parecia feliz. A luz opaca dos olhos sonâmbulos dele sussurraram a lentidão do outono, olhos cor de hortelã, ardentes e tristes. O ônibus do metrô chegou mais cedo e o pegou para bagunçar a minha vida, eu inventei uma paixão pelo carteiro que nem sequer sabe da minha insanidade. Eu inventei o nosso amor tão bruscamente, em uma quarta-feira transbordada de rotina, porque a solidão é mais pesada do que mil cartas de despedidas. Comprei alguns cigarros e o senti ser tragado pela minha guerra, pelo meu cansaço. Afogo os olhos por um choro oceânico e desejo muito mais do que antes colocar os pés sobre o mar de Ipanema a clamar para o dia não amanhecer outra vez. Oh, Carteiro, eu gosto muito desse sol risonho, mas acontece que a noite sabe degolar as minhas agonias, sabe esconder o vazio já descrito no meu rosto entardecido. Queria saber fazer desses parágrafos a minha sentença de liberdade, porém eles só me aprisionam mostrando a todos minha fraqueza. Observei-o por longos segundos até o maldito semáforo anunciar a nossa despedida, não tive tempo de contar como mudou o resto do meu dia porque já estava perdida no labirinto daquela barba desajeitada e tímida. Eu só teria alguns versos e a lembrança daquela partida prematura a oferecê-lo. Voltei para casa depois da aula de literatura e sentei na varanda do meu prédio tedioso, tomei um copo de leite da cor da pele pura dele e as minhas lágrimas salgaram a bebida. Desde quarta-feira da semana retrasada que não saio da varanda, ela está posicionada em frente aos correios, tem dias em que a minha esperança de vê-lo por alguns segundos é mais forte do que o sol de meio-dia. Não sei seu sobrenome, se pertence a outra ou se enlouqueci completamente. 

       Gyzelle Góes, 19 anos, louca, metida a poetisa e adoradora da Lua.

sábado, 10 de maio de 2014

Minguante

Cigano, o pior já passou e você não se deu conta, a maré está ao alcance dos meus pés afim de me levar pra longe dos seus cachos como garrafa vazia. Estou vazia de tanta lágrima que já chorei, porém  não choro mais. Fui à galeria comprar uns quadros antigos pois não quero espelhos na casa, chega dessa vaidade exacerbada que me deixava na moda, chega dessa maquiagem.

Hoje eu consigo atravessar a rua e piscar devagar para o rapaz da moto preta pois sei que ele me deseja, deixo um sorriso me fazer mais leve só para balançar os quadris com mais boniteza.
Ah, esses quadris que os homens quase entortam as cabeças para olhar por alguns segundos
não são mais seus, Taurino.

Você engoliu a minha crença e o meu outono,
ainda vem todo molhado dizendo para desacreditar nos signos como quem pisa em um chiclete sem cor. Maldito signo!
Hoje ainda é dia 10, o mês quer começar outra vez.
Estou de regresso na sorte, levo para a praia do Leme algumas oferendas aos santos da misericórdia. Rezo pelo meu coração tão bobo que se derrete como manteiga ao encontrar o pão quente. Que pão do inferno!
Seus instintos de lobo caçam a minha fragilidade, mas hoje a lua está minguante
e não tem homem que me enfeitice nessa fase.
A rua toda está em festa celebrando a minha liberdade,
a simpatia só funciona se eu sorrir para o barbudo que ainda não sei o signo,
mas o meu ascendente quer dar uma trégua
porque a astrologia está inteiramente estampada nos olhos cósmicos dele.
Dormirei na lua.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Sol lá só

Quero-te bem mais do que na poesia
O físico, a molécula, teus passos e ascos
Quero poder traçar na tua pele a tatuagem rasgada pela língua 
À sangue e saliva
Para te ouvir uivar perante a lua cheia de nós

Teus grandes olhos de lenha queimada entregam a tua insanidade 
Pregada ao pecado desde o testamento de tua pureza negada
Revele o teu retrato! 
Abandone teu passado!
Colha os frutos de nossa tempestade tão serena,
Desfaça o tédio e beije até doer minha boca pequena 

Despenteados são os nós do teus cabelos sem cor 
Lá vem novamente o nosso verbo, nossa conjugação 
Amasso, te refaço 
E não me acho
Acho que nasci para ser só 

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Já passou da hora de ser feliz

Estou exausta, Ana. Se você pudesse medir com uma fita o tamanho da minha angústia, faltaria fita. É tão desagradável estar a reclamar tanto da vida, a gratidão é surrada, é tão engraçada a forma como me acham feliz. Tão absurda! Trague-me as ameixas secas que estão a preço de ouro, mais caras do que as novas e viçosas, mais sofridas e desesperançosas. Não saia, Ana! Deixe eu lhe contar como é difícil carregar o peso de não poder errar, esse exemplo falso e vítreo que me obrigam a ser, como apodreço aqui dentro desse quarto rico. Não caibo aqui, Ana, pressuponho que você, como os outros, acham que sou ingrata e dramática. Não, não posso estar a lamentar já que tenho tudo, né? Oh, eu só queria a felicidade roubada ainda no ventre de uma mãe desconhecida, quando fui adotada esqueceram de também comprar o meu sorriso, o dinheiro não compra tudo, Ana, um dia você me dará razão. E essas suas olheiras? Amanhã não precisa vir. Amanhã eu quero chorar sozinha. Você acha que eu gosto de ser assim? Apesar desses olhos de verniz, tenho um coração selvagem e impróprio, pronto para amar e padecer. Por que esse espanto? Queira não zombar de mim, Ana, a solidão já judiou demais dos meus feriados, amanhã eu quero fugir para o circo da cidade e virar trapezista, sobreviver de expressas ilusões e quem sabe eu consiga ser feliz. Quem sabe por travessura do destino eu encontre de graça a tal felicidade que me foi furtada e deixe de fazer tantos lamentos pois já passou das seis e o seu expediente terminou outra vez. O trem mal chega e já vai partir. Não venha amanhã, Ana, fique em casa cuidando do seu medo idiota de ser feliz enquanto come as ameixas frescas colhidas da árvore do seu quintal ensolarado e florido, mas por gentileza volte no domingo.