terça-feira, 28 de dezembro de 2021

lembrar de nós

I.

se algum dia 
porventura
houver a despedida
ela que não nos alcance 

embora espero 
que a nós  
se reserve o ruído metálico, 
saberemos das espadas 
lançando-se ao chão,

suspiraremos doces e sem vergonhas

II.

armo na rede dos seus pelos
o pensamento que se estende,

ainda penso será 
que algum dia

será possível 
ser capaz 

não lembrar de você? 

penso só 
se algum dia 

eu porventura 
também me esquecer? 

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

amorar

na época em que colhia amoras, 
olhava para o céu ruidosa 
pela delicadeza 
violenta 
do bico dos pássaros 
do meu peito
que vibra como as suas penas 

o surto do vento me alisa,
sei que o amar é um breve uivo
que move os meus fios 
o meu nervo 
quero te mostrar a cor das frutas
depois de mordê-las 

depois crescemos, 
miro as nossas faíscas
difusas no ventre da chuva 
quero que você vibre 
depois que o sol as nossas mãos 
notívagas formas sombrear 

sermos aquilo o que o amor madurou 

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

faço um pedido à estrela cadente

a solidão desta data 
é imperdoável 

congela
os meus dedos

corto as batatas
em finas lascas

o gosto do teu vinho
corta o meu sorriso 

eu queria que você
estivesse embrulhado 

mas não tenho árvore 
nem presente 

mas tenho enfeites vermelhos
as pestanas rígidas 

da janela eu te aguardo
a esperança é a última 

que cai 

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

comovida

guardei uma foto 
dos meus pés
intraquilos 
na rede 
sou um peixe 
se debatendo 
meu corpo comovido

na memória da tua profundeza 

eu queria que você 

me dormisse 
antes de afundar-nos 

clarão

enquanto você estiver em mim
espero que o tempo
se torne uma fotografia, 

nossos rostos emoldurados
na boca dos túneis 
você, um flash no escuro: 

te guardo dentro dos meus olhos 

domingo, 19 de dezembro de 2021

conforto

tu sabe que o coração as vezes
é só um motor arrancando
a gente da cama

eu queria te levar a outro sítio
quem sabe dentro 
de outra cama 

quem sabe se a gente não fingisse 
que amanhã é uma desculpa 

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Sylvia

as vezes, Sylvia

eu acho que choraremos na banheira

toda a vida até que se acabem as águas dos rios 

e você não possa mais se afogar

assim, os teus cabelos, Sylvia

estarão secos na hora da nossa despedida 

domingo, 12 de dezembro de 2021

carneirinhos

recorro ao paraíso 
do teu corpo, 
de braços abertos 
do topo escalo o teu calcanhar, 

que miragem 
de uma memória
que eu ainda não visitei! 

para onde vão os carneiros 
que contávamos 
quando dormimos... 

sob o outro. 

dentro de ti, dentro de mim: 
nos situamos 
a imagem e semelhança 

domingo, 5 de dezembro de 2021

morangos

é tempo das flores dos morangos
cheiro o teu rosto
cheio do fruto
suculento
.
nunca estivemos 
tão pintados
como os morangos
no beijo de um bicho rosa 
você aborda o sol 
sem espinhos 
eu te ofereço 
a macia mordida
de um coração semente 
os parques 
esqueceram 
de nos convidar: 
fecharam-se 
as grades
abro a minha fruta, 
infinita ternura do estio 

terça-feira, 30 de novembro de 2021

cúmplices

é tempo de você
me furtar o juízo; a fala

nós que roubamos
os relógios banhados de prata 

(pairados detrás das vidraças) 

é tempo meu amor
de cometermos aquilo 
o que o amor não contou 

talismã

queria dar a ti 
um talismã 
um poema 
da espessura
do Sol 

viajar contigo 
de mãos úmidas 
como se 
me confiasses 
o calor das paisagens 

fazer uma canção 
que te fizesse 
amigo 
e amante 
e boca entumecida 

sangrar o que há pulso 
o que seja apenas 
um sinal 
uma palavra 

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

arrozes

quero te provar
pago os pecados
ajoelho no arroz
e o cozinho em fogo baixo

alinhados 
nós e os arrozes 
somos doces
mas nunca fomos

mais do que duas fontes

de alimento 
debaixo da terra
pedindo á deus
que nos perdoe 

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

fonte da Saudade

lançaram novas luzes 
nos fundos meu bairro
pensei ter te avistado 
com um livreto úmido 
debaixo do suvaco 
sob a sombra de uma jaca 
você que ronca enquanto
viaja à terra dos pombos
de lá avista uma silhueta 
de braços arreganhados
você me diz olha eu te vejo
desta janela rasgada 
eu não sei a que horas
digo que estou com vontade
de te cozinhar feijão
quando você me vê 
mastigar cebolas roxas 
você que não é como as cebolas
nem os meus olhos sabem
qual a hora de dizer 
você não dorme ?
no canto do meu bairro
há um refrão que eu te dedico 

eu quero te escrever em meus papéis

você que mais parece 
um dos meus poemas 
me encara com um gesto
no olho
eu me olho
através das tuas lentes
me questiono 
com que rosto
eu digo que te leio 

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

desgraçados

existem os escritores
que morreram/e ainda morrem
na sarjeta

meus caros, 

com uma mão na frente
à cara moribunda 
e a outra no rabo

existem aqueles que morrerão 
e não teremos notícia
nem uma notinha
para contar história

existem os esquisitos

sobre esses me atrevo a falar
que não passam de indivíduos
sem relógio e pouca intuição

e existem os escritos
aqueles que não precisariam 
existir se não fossem os escritores

grandes perpetuadores 
meu caros, 

das des
graças 

sábado, 13 de novembro de 2021

Castigo

assim como Adélia 
protestava, as vezes Deus me tira a poesia
mas e eu que nunca fui de me atraver 
com os mandamentos?
sei que há uma palavra, seja ela Deus
ou Paraíso
que me pega é pelos braços 

a língua dentro do ouvido

retorno à euforia
te sentar à casa

salvar da malícia asperezas 
a infalível forma dos tímpanos 

eu queria te sussurrar perigos 
que você ignora 
beija-me

descubra o porquê
do meu silêncio 

te direi que o nosso tempo 
é o zumbido 

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

no bico dos pássaros

eu vi o sol 

no verso do teu lábio


o inverno 

no bico do teu peito


encarei a face da carícia, 


avistei o pássaro 

dependurado 

no teu colar


aninhado 

ao meu semblante, 


olhemos para o firmamento 

atento às nossas asas 

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

as árvores crescem sem avisar

e eu que realmente
só queria esquecer
e se 

dormíssemos
agarrados 
tão quais
dois coalas no cio 

acordei com sede e 
gosto do seu cachimbo na boca

você que reparou na beleza
ordinária dos meus pés
e eu que mal sei
expressar outra reação
além de 
correr

para o teu mundo
ainda contado nos dias
ainda atrasado
porque 
não te conheci
em outra vida 

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

fruta sedosa

o que sei de ti 
é que tens um coração 
gosto de polpa bicada 

que és de longe sedosa

que a tua casca exposta 
brilha feito os olhos 
dos bichos ao anoitecer 

e que por fora
de ti envolta 
as pássaros brincam 
de se esconder 

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

herdei a guerra e a paz 
pouco sou dentro do mundo
mas brevemente me sinto parte 
das decepções que assisti 
em tela plana o ruído 
do jogo português 

uso um cinto que me aperta 
o couro do coração
reaprendo a respirar 
por puro instinto 
me lançaram aos besouros 

me tira a atenção o narrador 
não me importa quantos pontos 
marcaram aqueles que me arracaram
do conforto do ventre 
ainda é quente 

e eu que não encontro lugar aqui 
fora além do alçapão 

congelamento

me tiraram até a vontade de escrever um poema, eu que não tive vontade de retornar, não tive ânsia de chorar, não tive vontade.
o que resta para aqueles que perderam até tudo? 
.

o que será de alguém que se chama poeta se não há poemas? e nem vontade? 

não tive escolhas, mas sei o que devo fazer 
.

acendo um cigarro, penso que ainda me resta o pensamento - inútil. o que devo agarrar com as mãos no gelo? 
.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

gravidade

encontro um astro
no teu umbigo

atravesso 
a eternidade
com a ponta da língua 
inteiriça no teu ouvido

digo meu amor
não descubra a distância

capaz de nunca mais
sentirmos 
a gravidade 
da situação

o amor fora de órbita

ou o peso das mãos
o adeus nunca foi
tão longo 

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

mitológica

marcela, 
tateio o teu nome pelo cheiro
finjo sono. padeço etérea 
em teu seio montanhoso. 

às manhãs, nuvens 
dormem flutuantes. 
à tua imagem 
se assemelham 
as tempestades. 

marcela,
titubeio à beirada
do teu nome. 
como quem escala 
o morro antes de sísifo, 
teu nome na boca carrego. 

rogo à Deusa despencar 
rente aos teus lábios, 
pétala morna. 
paraíso, linguagem
infinita. 

incontinente

não restar nenhuma palavra
para contar a história da nossa fuga 

você que já não estimo 
alívio ao desespero vão 

há quem diga que a carência 
é um estado

eu diria que formou
um continente 

na palma das minhas mãos 

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

olhos de engolir horizontes

com as garras
firo o seu corpo do adeus 
me prendo à pele morta

fito a fuga 
dou tempo às paralelas 
finjo que te perdi 

quem sabe se você 
não fosse tão macio 
faria de montanha
as suas costas 

quem sabe se você 
não fosse tão escorregadio 
não escaparia 

nem por um piscar de olhos 

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

não nos propor o esquecimento

pensar que você existe,
dou as costas... 

espero que você esteja 
à minha espera 

com um buquê de flores 
vermelhas nos olhos

aguardo viver 
além da fantasia

de você existir além 
de nos poemas, 

ainda em mim 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

curtindo a vida à passarinho

o passarinho se espanca
contra as grades
as tuas mãos risonhas
dizem até logo meu passarinho
você que eu mal sei encarar
me olha o corpo
como quem quer correr
não tenho pulmões saudáveis
tóro as havaianas
compro uma cerveja no posto
8 contos um latinha
o que eu não faço 
movida à álcool
quero saber o teu telefone 
te passar um fax
deixo a minha voz na tua bina 
vamos meu benzinho
atrofiaram as nossas asas
mas ainda temos essas pernas
curtas feito a vida 

domingo, 24 de outubro de 2021

eu e o meu umbigo

nas manhãs de domingo
busco algum rastro morno 

no ventre do sono
me curvo nas insônias

compro passagem para a ilha
do buraco esquecido no mundo

vejo o meu umbigo de longe 
pareço mais perdida

acordo dentro dos dias 
em que estamos desaparecidos 

o sangue é sangue

sempre há um gole 
de misericórdia 
na mão
que te apedreja 

nem que seja
para que você veja
que o sangue é sangue 

perder os olhos

por mais que eu seja a mulher
que te beije depois da manhã seguinte 

ainda serei aquela da despedida 

não é por agora que eu perca 
os olhos na chuva da rua 

por te perder tão cedo
sem achar que você tenha sido 
algo meu além de algo que nunca tive 

terra úmida

lembro quando te esqueci 
você parecia um broto
enfiado na terra úmida
os teus olhos férteis
fáceis perto da poesia 
a tua língua úmida sabor terrosa 

lembro quando te esqueci
tão longo quanto uma raiz
o que seria da sombra 
se não a eternidade do teu tronco

lembro quando você surgiu 
uma broto enfiado dentro
do meu corpo terroso, úmido
meu olhos arados 
difíceis de dizer 

onde você se instalou 
no meio de tanta folhagem 
lembro quando me perdi 
não sei a qual lugar 
tivesse de lembrar de te esquecer 

sábado, 23 de outubro de 2021

bicho, mata e coração

em qualquer lugar 
desse local de mata 
eu poderia te entregar 
o meu coração 

você suspeitaria 
que arranquei de um bicho
com as próprias mãos

em qualquer lugar eu poderia
te provar que sou bicho,
mata ou coração 

terça-feira, 19 de outubro de 2021

fim da linha

o fim do mundo 
é aqui dentro, 
e eu nunca fiz questão
de adiar

olho para o furo do olho
lambo um verso pela borda 
como quem não tem estômago
para o último pedaço, 

uma placa na mão de 
alguém no fim da rua
"O fim anunciado" 

mas aqui dentro
nunca fiz questão 
de salvar

costurar maçãs

o hábito de costurar maçãs 
pelas beiras 
me fez rosada 
escalo orgasmos macios 
fui crescendo muito amena 
mas o meu olho
ainda não abre 
não sei o que é morrer
senão a morte antes da vida
quando dei o primeiro choro
recordo o sabor
da placenta 
e acho que a mágoa 
decorei antes de tê-la 

para o dia nascer

antes do café bebericar o salobro 
dormente da língua 
revelar a ponta do sol
no calor do seu dedo
circulando 
antes do dia 
antes de ontem 
antes que tudo isso 
o que chamamos de corpo anoiteça 

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

revisto o museu da infância

lembro quando as colhia 
no chão esverdeado daquele jardim 
robusto, imerso. mangas suculentas 
por obra do susto da queda, molengas. 

eu as trazia nos fundos bolsos,
mangas que se acomodavam inteiriças 
nos bicos famintos dos pardais, 
de corpulências tão sutis. 

os rastros amarelos 
de sumo das mangas 
permanecem espalhados 
pelas folhas dos meus rascunhos. 
 
as mangas, verdes
dependuradas nas árvores verdes
de amarelo maduro o tom, 
aquela saudade arquivada na memória. 

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

terça-feira, 5 de outubro de 2021

faminta

na margem 
da minha nebulosa 
te escrevo 

um poema 
cadenciado 

você 
me diz 
que as estrelas
cairiam junto 
a mim 
da janela

eu te recebo 
no meu sofá
antes 
de almoçarmos 

não temos tempo 
de nos despedir 
dos talheres

você 
me come 
antes 
das palavras 

domingo, 3 de outubro de 2021

poemas mais curtos do que as minhas saias

desaprendi 
a fazer versos longos
talvez 
eu esteja encolhendo

é o que acontece
com os cabelos
a voz

talvez 
eu esteja apenas
mais ou menos retraída 

sair da infância
não significa crescer 

o tempo

se o tempo não para
imagina nós 
que não cabemos
em uma moldura
o que dirá o motorista 
que fez sinal no ponto

tivera de bater antes das cinco 

terça-feira, 28 de setembro de 2021

quero ao menos sorrir

me faça sorrir
ao menos uma vez 
da nossa desgraça 

um amor tão triste 
assim ao menos
não me deixa saídas 

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

o que fizemos das nossas delicadezas

o livro 
o que fizemos das nossas delicadezas 
está em mãos! 

quero agradecer colossalmente aos que apoiam, creem, leem poesia. em tempos tão delicados, haja poesia, viva poesia. e a quem segura a minha mão pelos labirintos da vida e da palavra. 

você que adquiriu o seu exemplar de "o que fizemos das nossas delicadezas" pela Editora Folheando na pré-venda, saiba que esse gesto é de muita significância, assim você garante que mais livros circulem antes mesmo da impressão. 

estarei ao longo da semana cuidando dos autógrafos, dedicatórias, embrulhos, os marcadores e tudo o que há de bom e exclusivo para enviá-los aos correios com toda a delicadeza que for precisa. 

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segunda-feira, 20 de setembro de 2021

canção

quero pintar 
as cores da sua casa 
sair pela cidade 

cantando as letras 
que você esqueceu 
de fazer pra mim

ser o motivo 
do retorno
e não ter lugar 
além de coração 

sábado, 18 de setembro de 2021

o passado é uma roupa grudada

lembra você 
montando na fronteira 
das minhas costas

e dizendo 
que o maior perigo do amor
é de ter de carregá-lo

o meu coração 
não aguenta orgasmos múltiplos 
não aguenta a ideia 
de beijá-lo 

sabe bem o peso
de ter de desgarrá-los
nossos corpos; nossos passados 

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

as borboletas vinham

o segredo é se esconder detrás das borboletas

não esperar o grilo da noite acidentada 

as blits pararam a minha rua agora como vou controlar o meu tédio 

a borracha das maçãs no fio do seu canivete 

carnívoro devoraria tudo se não fosse o pecado 

despeço-me. porque não sei mais o que dizer porque estou fermentada 

e não restou nem uma uva 

aqui dentro e apontei para o peito

tudo em nós, 

uma ausência continuada 

as palavras cheiram a coágulos

estendi o lençol vermelho

reparastes? 

sou tardia  

calçada estendida 

nossas mãos, 

nada firmes

os rostos acusações 

mantém-se, 

você me diz que o escorpião 

fere a sua moral

eu diria que o animal 

é inofensivo, 

eu digo que tudo em nós 

nos fere e amansa 

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

face do dia

vi o dia amanhecido 
na preguiça 
do teu corpo 

não sei se eu acordava 
ou se espreguiçava 
o meu contorno 

no teu tornozelo
no zelo do teu entorno 

vi o dia nascer 
diante do meu rosto 

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

enluarada

me deixe dormir 
mais uma vez
no cheiro 
da tua cama

bordada de beijos
anunciada 
noturna 
distanciada morte 

nos cubro de insônias 

marítimo

descobri o teu nome
na boca de um pássaro à beira 
dos cabos de cobre 

o teu nome que pouco importaria
se não fosse a minha sede
que pouco importa 

se cala ou clama por tuas águas 

terça-feira, 7 de setembro de 2021

brasil

quem dera 
o amarelo 
da sua bandeira

não fosse 
desespero 

pormenores

gostava de assistir 
o seu pau
meia lua
parecia uma meia lua
você gosta da minha canção
você gostava
quem quebrou o seu nariz?
não se fazem mais águas ardentes
como antigamente
quem ralou o seu joelho?
isso é proibido
e aquilo também 
mas o seu cigarro
do banheiro 
vem até o quarto
quem te deixou tão suicida? 
não se fazem mais bolas
como as que nós chupávamos 

terça-feira, 31 de agosto de 2021

história do olho

o que sei de ti 
é o que desconheço

lembro da sua mão 
fugitiva no meu braço
enquanto contava 
a história do olho

pingo uma gota 
de colírio nos meus
mas penso 
que alívio seria

ver a ti uma vez 
mais denovo 

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

antes de vivir el sueño el sitio

los pájaros 
picotean y sorben 
nuestra casa 
soledades 
a la puerta de bocas
descansado 

pensé que nunca nos ubicaríamos. 

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

aliança

os homens armam 
furos nos tecidos 

da fachada miram 
o revólver

corações rompidos 
vigília 

confiam na guerra - 
que de lá herdarão a paz

não falo de paixão

olho nos olhos dos homens 
que não me olham nos olhos 

acredito que caminho 
é não ter 

domingo, 15 de agosto de 2021

gosto do nome búzios

medo de te esquecer
antes do ônibus pousar 
até de onde vim não recordar 

ser a palavra infalível 
pensar que você será 
o menor dos meus descuidos 

nadar

quando o barco
afundar 
a gente 
aprende 
o meu coração
paralisa 
nas mãos 
das palavras: 

decoram 
o estrangulamento 
a minha estação predileta 
floresce dentro das tuas pernas 

proibida

calculo os cigarros 

não falo das cinzas

sozinhas 
as guimbas
apontam 

aponto 
a este amassado 

na ponta do quarto
buscamos o isqueiro

limpo o cinzeiro

há quem diga que eu te deixei 

eu, meu gato e a nossa impressora

assistimos à morte das orquídeas
o mais improvável sucedeu 
na mesa da sala
eram flores plastificadas

mas eu não deixei de passar o café
furei a garganta de um só gole
agora fumo o cigarro
que amarelou o dedo esquerdo 

em cima de uma lata 
o sol quebrando o branco das fachadas
mal sabem da minha facada 
da morte das orquídeas falsificadas  

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

o que fizemos das nossas delicadezas

"o que fizemos das nossas delicadezas" (Editora Folheando, 2021)
.
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quinta-feira, 12 de agosto de 2021

babel

não há verão ameno neste pedaço 
extenso de terra batida

não há calor que supere
este suor pesado na testa

esta porrada do sol apontando

o que você chama de casa 
incendiou a sua casa 

o que eles chamam de amor, 
não há verão senão o apagamento 

não quero 
ser o centro 
desse poema 

mas olha só
onde me coloquei 

domingo, 8 de agosto de 2021

ciclo das águas

ser 
como 
um rio 

engolir 
o finito 

saber 
ser 
o seu 
princípio 

jorrar 
o indício 

saber 
não 
ser 

e assim
mesmo precipitar 

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

a porta aberta

aparentemente 
você está 
sempre 
arrumada
para ir embora

vejo a sua mala
onde guardamos as roupas 

me parece sempre mais cheia

e você com esse botão fechado
parece me dizer 
do coração 

quer eu desvie o olhar

eu me proponho 
a porta está logo ali dentro 

aparentemente 
você está 
sempre 
pronta 

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

esquife

se há um medo que amordaço 
nos dias suados, áspero

nos dias envernizados 
é o da minha solidão 

as cobertas não encobre
-nos

ela dorme 
sem os olhos descansados 
com o sono dos que estão cômodos

há este medo que se ouve do outro lado
muda, corcunda, envolta em meus braços 

a lucidez me obriga
a chamá-la 
de minha 
ainda mais assim rente ao corpo 

as vezes ela decide 
sem abrir a boca 
engolir o mundo
-nós 

de uma só bocada 

eu procuro as pílulas, leio as bulas 
me interesso por quadrinhos 
e penso em esburacar as paredes 

penso em esperar que ela volte 
para o lugar estreito
e comprimido de sempre 

eu própria não regresso
eu própria arregalo a boca e nos devoro 

sábado, 31 de julho de 2021

encaixotamento

quero ver 
se você tem 
ânimo 

resistir 
ser esmagado 

minha sombra
dentro do meu pânico
dos lugares fechados

é que encaixada 
ao seu corpo
eu só insisto em existir 

quinta-feira, 29 de julho de 2021

coberta

está muito frio para tirarmos a roupa
vamos abrasar os olhos
me deixe imaginar a sua pele
nos dias de quentura 
a temperatura que seria 
nos compre um vinho qualquer
hoje queimaram a Cinemateca 
estão incendiando o nosso filme
mas está muito frio para sairmos 
acabar com eles 
as mãos escorregariam
das luvas nos pescoços 
mas o seu corpo eu já imagino
o suor que seria à 40°C 
está muito frio vamos nos cobrir de vontade 

segunda-feira, 26 de julho de 2021

fantasía

caminhar à borda do sol
sorvete de nuvem na língua

o seu braço como laço arco-íris 
enfeito de sombra a luz 


bússula

desafiamos a velocidade das mãos 
crescendo dentro dos domingos

uma rosa a ponto de fugir 
o rosto tremendo na sombra do fogo

o teu coração o tamanho da onda 
alucino na rotina do tempo 

sexta-feira, 23 de julho de 2021

ex-tou

fritar 
as batatas 

lembrar de você
declamando eu te amo

como se fossem as únicas
coisas do mundo

as batatas
e os amores 

eu
não sei quem somos 

um dia na grama da praia em que fomos conversar com Deus

o mundo 
tão violento
os meus pés 
o mundo 

me olham 
sem a sutileza
sussuram 

olha só aquela 
felicidade aguda 
olha só aquela 
criatura besta 

violeta

recorrer aos olhos, 
n'um dia de sol 
fazer chover 

testemunhar da flor 
úmida o nascer

nuestras miúdas 
alegrias violentas. 

segunda-feira, 19 de julho de 2021

moldura

no teu peito
eu abri uma cova
com as mãos 
em forma de Vitória Régia 
nos enterramos 
e quando abrimos
os olhos polvilhados por Terra 
vimos os girassóis 
que Van Gogh pintou 

perder a mão

você acha que esse poema
ainda deveria nascer
se te parecer 
incompleto
por acaso
diga se não perdi a mão

mas é que a fratura
tomou conta do meu ser
e os meus poemas
mais parecem cortes secos

você acha que nós 
ainda muito prazer
morreremos 
por acaso
diga se não perdi a mão 

o eu

nunca estive
tão distante
do outro
tão próxima 
do eu 

estou bem
mais
acompanhada
como nunca estive 
eu disse 
não quero ser o centro
da sua frustação

mas olha só 

onde estou 

domingo, 18 de julho de 2021

metá metá

se escuta o ruído metálico 
das mãos a esfregar 
os óleos das superfícies

se roça os ouvidos 
rente ao areiar dos pratos
da noite passada 

suspeita, limpidamente

da água pegajosa dos olhos 
de prata disfaçada da noite 
que avança, transparente 

sábado, 17 de julho de 2021

terminal

não gozo
de pegadas 
de outros corpos
além do seu

atravessando as minhas vias 

sucumbir-me

debaixo 
dos teus panos
o mapa do Brasil 
não revelado 
por dentro 
do teu músculo
o oco
o cio 
o ciclo 
ainda desconheço
se caibo dentro
de ti em algo 
e mesmo se soubesse 
sucumbiria 

quinta-feira, 15 de julho de 2021

rasgar

poemas
até chegar

a você 

até cruzar 
a costura 
irremediável 

na ferida no tempo 

peito do pé

escrevo 
sob o seu dorso 
do peito
do pé 

calçada 
à mesma 
estrofe
que o poema 

nunca vi coisa
mais arisca 

segunda-feira, 12 de julho de 2021

a força da minha poesia
está 
no fim 

antes de mais nada

custei a descobrir
que horas era a hora
de voltar para casa
me custou quase tudo 
apesar de eu não ter tanto 

mas ainda tenho vontade
de que esse poema fosse uma voz
e que eu tivesse voltado
um pouco depois
de descobrir o que é o silêncio 

duas foragidas

eu e a minha solidão
recém soltas 
pela palavra 
saudade 

incertezas

acordei por pouco
suspensa
no parapeito
no peito de algum 
desconhecido 
o seu nome
se leu algum poema meu?

parei para escrevê-lo 
antes do salto 
daqui a altura 
me parece incerta 
me sinto maior 
embora

não alcance 
a medida do controle
desconfio
roubaram as horas
os bolsos estão leves 

penso em perguntar
em que ano estamos
mas hei de concordar 
que não importa

agora
o que devo saber
é se esse corpo
ainda é meu 
antes de levá-lo 
embora 

esteja muito confortável
no precipício
talvez
dormir de novo
me pareça o ato
mais seguro no entanto 

antes de morar o sono o sítio

os pássaros
bicam e bebericam 
a nossa casa 
solidões 
na porta das bocas 
repousadas

achei que nunca nos situaríamos. 

quinta-feira, 8 de julho de 2021

mapa-mundo


penso se posso suportar 
esta solidão
deste lugar na terra
tendo um coração tão delicado 

cavalgar a estreitar a rua
esta pedala atravessa o corpo - 
o meu desandado 

se o rosto ainda de lado
reage à contusão
do tempo
e das mãos
lentas dentro de um navio  

da longitude te vejo
ainda uma miragem
que flutua
sob as nadadeiras 

nada é sem eira
resta o pouco de vista 
encontrada em você

um mapa no meio do mundo
pedindo que eu siga 
embora não diga 
à qual direção 

segunda-feira, 5 de julho de 2021

a portaria do hotel

pressiono a porta 
vermelho-tábua 
intento abrí-la 
o garçom enfurecido diz
com a cabeça 
não é permitido
insisto em fumar 
lá fora 
me segue 
com o dedo duro
eu impressiono 
e alguns me olham
com dureza indiferente 
todos voltam a comer
amanheço no tribunal
uma mulher pisca 
e me dá o cartão
diz que tem entradas 
para o museu
todos se voltam 
aos seus pratos
vocês não sabem mas
tudo o que carrego está sem fome 

escrevo longe do antes

não há 
despedidas
o que guardamos 
dentro das pernas 
das cobertas 
retorcidas?

no almoço 
de família 
ouvi dizer 
que as coisas 
sempre estiveram 
distorcidas

só não eram noticiadas...

penso no teu contato
não me deixo encostar 
no banco da frente

as coisas sempre são
quem devora a distância

sexta-feira, 2 de julho de 2021

morte delicada

não sou tão delicada
quanto a morte 

enfim vão me olhar
com a ternura 
que nunca ousaram 

vão me olhar 
no olhos
como nunca ousaram 

o amor recluso 
o meu coração 
            batendo
a morte 
            bate 

que seja a delicada 
pegue minhas mãos de gelo

acompanhe 
os meus não pecados 
à boca do inferno

quero o que a delicadeza 
fez com as flores 
neste inverno 

à tarde

ele me perguntou o que era o passado

o café passando na máquina 

talvez 
o que sejamos agora 

quinta-feira, 1 de julho de 2021

lira

o que há de mais arqueiro 
em seu olho de Cérbero
é que quando eu desvio 
os meus inquietos 
você sabe ver 
onde é a saída 

terça-feira, 29 de junho de 2021

declame todos os poemas que forem meus

as vezes eu imagino
com demasiada ternura
pois nunca esqueceria do seu corpo 
e o corpo no espaço
que você escreve versos à mim
todos os dias antes de morrer 
crio que você me inventou um planeta
próximo ao meu nome 
as vezes eu imagino
que quando você lambe o amor
é o meu corpo que recita 
e eu me sinto egoísta 
mas me sinto grande
como nunca imaginei a distância 

uma fotografia rasa

gullar levou 30 anos
para pensar numa fotografia aérea
e 1 ano para escrevê-la

você levou 3 meses
para encontrar a paixão 
e 1 dia para esquecê-la 

domingo, 27 de junho de 2021

página virada

que não falemos mais de amor
comecemos pelos prazos 
passou-se três meses 
das suas juras 
depois saltamos às dívidas
te devo 100 contos
que falemos da primeira vez
que eu te peço para ajustarmos 
os pontos finais 

sexta-feira, 25 de junho de 2021

S. Gg

investigo 
os rastros
autobibliográficos
deixo 
escapar 
a vida morte
a ficção vida
a ficção morte
penso no seu e o meu
pequenos fins 
vejo os zumbidos
que as máquinas
e as paredes 
e o fios
à tua à minha espreita
no pacto 
na morte vida 
do autor 

quinta-feira, 24 de junho de 2021

morrer de amor é karma

me interrogo
te espreito
lançado 
ao lado 
esquerdo 
da cama 
de casal
se fora 
da cama 
se dentro 
do seu peito
há algo 
ainda mais suspeito 

me lanço 
o corpo 
à hipótese 

terça-feira, 22 de junho de 2021

...

tripas cruzam as pernas
olhos cor do mar vermelho 
dedos involutários
escreveram 3 poemas 
o coração

esse não se move desde
a última vez 

amarelo

a mesma pasta amarela 
dentro de um museu e 
o meu quarto alegórico

espero acordar 
antes do Sol
mas não antes 
de Você chegar
como quem deseja 
despejar a dor amarela 
no copo translúcido 

disseram que a bagunça
espanta os fantasmas
digo o contrário
acredito nas fantasias   

corvo

(tudo o que amei, 

amei sozinho) 

era Poe 
em uma taverna
com uma cerveja escura 
e quente na mão

eu posso sentir 
a mesma solidão 
daquelas que é precisa 
para não endurecer 

se não 
a gente 
vira gado

se não 
a gente 
vira cardume
empilhados 
dentro de 
latinhas 
dentro 
de um 
depósito imundo 

e eu sempre 
fui aquela 
que olha para os lados
só 

atravesso 
antes 
de todo mundo 

domingo, 20 de junho de 2021

sábado, 19 de junho de 2021

bom dia

eu havia te prometido 
uma carta de amor

embora também 
tenha te prometido 

acordar de bom humor
mas você sabe 

eu não posso cumprir 
as promessas pela manhã 

terça-feira, 15 de junho de 2021

as mãos são protagonistas do adeus

quero desaparecer 
na hora acesa do adeus 

o meu gesto
se retrai:
refém
das mãos
decoradoras de despedidas 

mas vejo reluzir
o seu anel de herança
o meu coração se ameniza: 

há de concordar
com o brilho desse aceno 

reconstrução

quando eu te olhei
com os olhos 
de costurar terremotos

foi pra mostrar
que uma mulher
abalada 
ainda constrói uma cidade 

terça-feira, 8 de junho de 2021

a história do beijo

pela primeira vez 
que fechei os olhos
dois dias antes de eu nascer 
trocaram o meu nome

voltei a ser o que eu deveria
ter sido

da segunda vez
apagaram as luzes 
o vizinho tinha 
o mesmo nome 
de guerreiro que o meu

mas na terceira vez 
com os olhos fechados 
ousei abrir a boca: 

- a minha língua descobriu 
o que era passear sob as águas

segunda-feira, 7 de junho de 2021

bambolê

os meninos dentro do sol
espreitam os seus rastros 

o que seria do amanhã se o sol 
e os meninos dentro dele 
não tivessem nascido? 

de dentro do arco
o tempo faz a ponte entre
o que eram aqueles meninos

e o que há de mais terno 
neste retrato animado:
a miragem dos meninos 
crescendo dentro do dia 

domingo, 30 de maio de 2021

receptáculo

guardo 
o suor 
debaixo 
do peito

à paisana
a terra 
afunda 

no eixo 
das palavras
-chave 

assisto 
à queda 
dos peitos

guardo 
o meu coração 
em um continente 
frágil 

terça-feira, 25 de maio de 2021

da partida o gesto de repartir

I. 

tenho as mãos
pesadas 
no colo 
do umbigo

nada mais resisto 
além 
de afagar 
-te 

II. 

há quem perceba 
que nascer 
além 
de abrir 
os olhos 
e de cortar 
laços 

seja descruzar 
os braços
na hora 
do adeus

sexta-feira, 21 de maio de 2021

ama

ama primeiro 
o que eu nunca fui 
ancorada na alcova  
à espera do juízo 
e o teu perplexo 

antes de amar 
apenas que me vista 
no corpo do poema 
a parte do corpo 
sensibilizada 

antes
ama a vontade 
embora
seja só 
o desejo de ir 

ser a mulher que você nunca amaria 

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Regresso ao estado originário da minha fantasia

Percorro o jornal da manhã. Vejo o rosto do passado, do meu primeiro carnaval, nos rostos daquelas figuras das páginas. Embora diferente das cores e das serpentinas agitadas, são as pessoas - mascaradas - que vagam pelas cinzas da cidade pasma. Desejo o sítio por mim criado no tempo em que com os olhos escrevia marchinhas para o mundo, lugar no qual eu enterrei a minha bicicleta e o meu semblante solto. Atualmente pedalo com os dedos nos papéis e espero com cuidado a liberdade, essa danada que se despediu com o primeiro sorriso pela manhã. Hoje, todavia, a vontade de sair se manifesta. Marcho com os dedos, inquieta a minha crônica desfila em festa, lá no fundo alvoroçado da memória a folia regressa e me sorri: o carnaval se faz é na rua do corpo das palavras.

domingo, 16 de maio de 2021

derramar a si

bom 
é se despir 
da espera 
enquanto 
aguardo 
o fim do fim 

e a aquidez 
da paixão que você 
me prometeu 
na imprudência 

tomo mais um drink 
de água ardente 
busco, além do seu reflexo, 
o que escorre das auroras 

bom é se despedir do que não despenca 

quinta-feira, 13 de maio de 2021


teus olhos são duas luas
despojadas no rio frágil da memória 

ainda que eu falasse de amor
ainda não abarcaria a noite 
revelada em nossas sombras 
o que trago nas mãos é o susto 
atravesso o sorriso 
de uma desconhecida palavra,  
obra cujas mulheres 
- em construção -
saíram para o almoço, 
uma placa na veia da cidade 
entre dois grandes blocos de vidas
sucumbidas

o medo nunca foi apenas o estalo 
por dentro ele aparece cheio de dentes,
rosna e aponta 
- ainda que os umbigos fossem todos para
dentro - 
mandaram que nós trancássemos
as bocas, mas ainda há uma diminuta 
ferida indolor 

se enfiarmos o dedo é capaz de abrí-las 

quarta-feira, 12 de maio de 2021

náufragos

a minha mãe tem os olhos de costurar 
oceanos e navios 

e eu, ainda tão verde no ramo 
tenho é os olhos de mastigar maçãs: 

devoro tudo a meu gosto

e me atrevo, suspensa 
a fazer afundar embarcações 

sábado, 8 de maio de 2021

vertiginoso

o corte da vidraça vigia a tua silhueta 

suspeito do teu amor
quando me espia, 
fresta ímpar do poente unilateral 

te vejo despistando a sombra 

no tempo em que frequento 
morosa a despedida, 
dentro dela me comovo trêmula 
 
a carne o que é se não o vestígio 

segunda-feira, 3 de maio de 2021

pena

quando fui criança costumei a curiosa passar a mão pelas suavidades das coisas e s p a l h a das pelo mundo 

numa certa vez numa pracinha em Copacabana ao tropeçar na pena de um pombo cambaleante chupei a pena dele sem dó feito quando faço com a palavra até enxugá-la 

guardei o meu apetite para o verão desse amor tardio

após o ato cresceram três caroços no meu pescoço e eu me dei a sentir adoentar a euforia nessa época acostumei a dormir o silêncio das covas 

e foi quando tive de tomar leite de peito eu tinha acabado de secar todo o peito da minha mãe de angústia também 

depois os tempos avoavam mas a pracinha continua enferrujada ou seria avermelhada pela luz do dia das tardes ferrugena da infância? agora ela é mais vazia ou sem zelo sem minhas andanças 

talvez a rua esteja menos acarinhada agora eu só me afasto do mundo 

o peito foi ficando mais e mais seco cada vez e eu acho que o leite agora é do sabor da lágrima que eu não consegui evitar com a minha língua 

só o que mudou realmente é que ao invés de chupar a pena eu faço confusão entre as aves migratórias

quinta-feira, 29 de abril de 2021

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016
última parada

canto
da rua 
fora do rumo 
o equívoco
me leva
ao corpo
almejado
seu 
passo brando
retorno à memória
beiro a distância
predestino a história
já mais vívida 
avanço
mantenho
os passos
e acho estúpido 
o descuido
cruzando 
nossos caminhos
colidindo 
nossos corpos
confusos 
da rua 
você para
o pensamento 
e me vê
apressada 
suando 
de frio
calor
a hora do almoço
você passa 
será 
qualquer 
o motivo
mudo
de calçada
vazia
você
também sorri
assim
esticando
os lábios 
pro canto
pressionando
a pele
na parede
as folhas 
subindo
descendo 
os troncos
as curvas
desvio
aqui 
seu
sorriso
virando
a esquina
paro 
ali 

juntos

a sorte 
de um amor 
deitado 
na sombra

olhar 
os teus lábios
de achar poemas 
perdidos

noites 
de carnaval amor
sem forma
não vejo 
a hora 

do mundo
acordar 
e a gente também 

quarta-feira, 28 de abril de 2021

algum lugar no qual nunca estivemos

você fala de amor 
feito uma criança abrindo 
o álbum completo de figurinhas

declara a despedida 
como se já soubesse que nós
nunca nos encontraríamos

talvez algum dia você me ouça 
recitando um poema
que pareça ser em vosso nome 

talvez o poema seja 
algum lugar no qual nunca estivemos 

segunda-feira, 26 de abril de 2021

miúdos

guardo for me amar 
não esqueça das fronhas 
de trocá-las 

da chave na porta 
gire-a 
de varrer os pelos do gato 
os pelos e o gato estão no tapete 

de cortar as mangas 
as mangas maduras
todas 
chupar os dedos
todos 

antes e depois de fazer-nos gozar 

sábado, 24 de abril de 2021

dilúvio

te aguardo
com o coração áspero 

faço das minhas mãos
o teu aquário: 

nosso dilúvio 

segunda-feira, 19 de abril de 2021

meu monótono viver pede passagem

ainda que sangremos 
às 4:
40 
o 4 3 9 
estará estacionando
não 
meu bem
para esperar
que a gente embarque 

mas a seguir o rastro do dia 

eu 
por mim 
já não 
me importo 
se o sinal fechou
antes da bicicleta elétrica 
queimar o dorso
dos meus pés
fora da calçada 
ao contrário

viro a face faiscada 
e vejo de bruços 
o debater
infalível 
da natureza 
apressada 

meus planos 
nunca foram 
de dar certo
de estar correta 
mas 

tem dias que a vida faz questão
de me esfregar a sua graça 

domingo, 18 de abril de 2021

principio

mergulho no sem-fim 
ao teu nome atracado 

penetro em teu corpo
feito uma primeira dança 
numa bicicleta azul 

há de existir algum caminho
que não termine 

sexta-feira, 16 de abril de 2021

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Nos fundos o som da flauta

a casa 
permanece imóvel 
algo está suspenso
não há o que dizer 
da alegria hospedeira 
no resto da outra janela 

se os vizinhos 
decidem se jogar
o menino flautista 
da cobertura 
toca a marcha fúnebre
que por acaso é a única música
que aprendeu por morar na cobertura 

no parapeito 
uma mulherona fuma e bebe
qualquer hora do dia/noite/
permanece o recorte 
de uma revista manchada no vidro

o amor revisitou 
a nossa cama 
algo está dentro do lugar incomum 
vigio a sacada e monitoro 
o último instante 
em que os pés 
estiveram ao chão 

quarta-feira, 14 de abril de 2021

leviana

não saber por onde começar 
anuncia o poeta 

que pouco fez senão gozar
da sua condição de louco 

da mão que quase não se move
dentro de um cobertor fino 

mal estive abocanhada pelos dentes
mas de bem o que colhi

foram os olhos fechados da noite
me comendo fria 

não saber por onde ter fim 
anuncia-se um lugar no poema 

sexta-feira, 9 de abril de 2021

não diga que não te avisei

segura minha mão até a rua terminar 

esse barulho louco? o meu coração

nunca te contei desse sol que combina 
com a tua íris luzidia?

olha só que descuido essa rua no fim

e nós de mãos vazias

segunda-feira, 5 de abril de 2021

no semblante algo além do desejo

você me olha 
cerimoniosamente 
como quem rasga 
o corpo vermelho cintilante 
de uma bala de licor: 
 
ainda nos salva o que escorre 

O poeta espião

se você vem às duas

por exemplo 

desde antes de você dizer que vem 

eu estarei à sua espreita 

sábado, 27 de março de 2021

algorítmico

fisgo
o corpo 
além da carne

crave 
a mandíbula 
do medo 
o parco amortecer 

aprazer 
de gelar 
ao entorpecer 

o trauma 
a cartilagem 
trêmula 

agachado 
neste corpo 
tão medonha 

a coragem nova e tátil de sentir 

quinta-feira, 25 de março de 2021

a fome dos parques

o tempo se fecha áspero 
sob o rosto monótono 
do copo de plástico 
como um morango 
esmagado num drink de 51 

o outono senta cabisbaixo 
descascando 
o balanço paira 
o parque às traças
as crianças esquecem 
de brincar e de cair 

quem veio me disse que anoitece 
um senhor faminto 
alimenta os pombos 
famintos 

me avisam não só da prontidão 
da migalha do tempo 
apontam para o meu umbigo talvez 
ser adulto seja a solidão dos parquinhos 

sexta-feira, 19 de março de 2021

silêncio de contrato

com as pestanas 
a trilha do teu corpo
salgo lenta 
como quem pretende 
a procissão em Vênus cruzar

a ausência 
desta partida 
incedente 

o eco da nudez 
o rastro dos latidos

tateio o mapa 
territorial 
o limbo sorrateiro 

o verso da linha 
entre a tua boca amiúde 
até fim da minha solidão enfadonha  

você me diz ser 
meu nome 
Do desejo 

prometo 
o beijo 
a despedida 

(carinho contido por puro cuidado)

mas ainda hoje confesso não domino 
o teu nome por inteiro na língua 

domingo, 14 de março de 2021

berçários

haveria de sentir a solidão 
da lantejoula dependurada 
suportando o peso do ninho 

se há lanhadura corte 
ou espatifo; perambula 
o vento arriscado e certo 

se volto para casa ou entro na sua 
se por acaso me perco
se lugar nenhum 

o cão covarde mostrou-me  
ainda na infância: a coragem
se prova 
é correndo 

meço cauteloza o salto 
berço de quem vigia  

o peso deste amuleto ríspido 
brilhante dentro da solidão 
dos berços e dos brincos 

sábado, 13 de março de 2021

calabouço

joão,
lembro de quando você me mostrou que os versos não nasciam amarrados, 
foi tocando no teu verbo, no meio da saudade, que descobri cavalgar - teu torso me levou até a curva da nuvem de uma noite boca de forno, desacreditei que haveria chuva em pelo menos todo o festival 

depois saí pela são clemente crente de que a luz del fuego da varanda que li no teu poema estaria numa rede ou no bolso de alguém que passava, algum sinal de fumaça ou de incêndio que vi em teus olhos aquela vez única 

depois veio mais saudade além da rua, mal passo por lá, voltei a cortar caminho e agora corto os versos, não faço mais a bobeira de amarrar mais nada, mas ainda me amarro na pronúncia declinada do seu nome, meu próprio calabouço

bailemos

a maior distância 
é aquela entre o cordão
envolto em teu pescoço 
ou o que faz terremoto 
ou o que pisca enquanto 
te vejo brilhante ao redor da pista 

haverá baile entre nós
até que não nos cansemos 
do aperto de dançar onde o amor toca 

sexta-feira, 12 de março de 2021

guerra e paz

há rebeldia balbuciando 
cravada neste esquivo riso 

e na bandeira feita justa do teu peito 

malícia que mal se mostra quando
você entre-abre a porta 

eu me pergunto se você iria embora
não quero saber 

quando a guerra ameaça
seus olhos são a paz no pedaço
desencontrado de terra movediça 

sábado, 6 de março de 2021

a
fun
da
mo
-nos 

- mas, assim como 
em todo lugar paradisíaco - 

devíamos 
abrir 
os olhos 

ao pé da letra

esta saudade tem nome sorrateiro 
eclipse a vista me embaça 

dilata feito uma cratera o degelo
se arrasta pelo olho do umbigo 

e desembarca análoga à sólida 
lava na boca 

escancaro - a 

alguém me diz que os poemas seriam mais 
leves se eu os levasse a sério

terça-feira, 2 de março de 2021

véspera

há quem repita 
o amor 
é uma dor de dente 

e hão os banguelas 
chupando 
manga com leite 

roço os dentes 
em seus tendões
a noite é compadre
dos corações pardais
 
impossível 
não sentir a dureza 
a moleza desse ouro 
no pescoço dependurado 

canto à tua orelha, 
mole e terrível 
os ossos 
nunca esquecem  

o amor 
o que é 
se não a véspera? 
quando o Sol nos coroa
pergunto da imagem que a gente fazia
nos troncos contraídos, da pele raiando as raízes,
a marca do teu rosto rastreando as ramagens amarelas
e os brotos corando, o verdinho queimando a pálpebra
tu pergunta coisas em silêncio
e me pergunto da imagem que a boca fazia
a gente ensaiando uma nova balada
do samba no banco de vidro
envio os ensaios da poesia
que pensei arqueada ao teu esboço
era o breve tempo acenando
dizendo coisas da boca em bamba
mais um enredo ao nosso gole,
entrar em campo, o Sol coroando a imagem
que a gente fazia do amor saudando os braços descontraídos
eu me pergunto da imagem que a gente fazia
quando o amor se fizesse brilhar mais do que o próprio reflexo de Narciso no Rio
e são tantas línguas palavras salinas 
e tantos mares que porventura corriam no mato
desprovido de roupa o inverno
saltitando sob os lençóis as aves saltimbancos 
éramos bonitos e a paisagem um brinco,
falar de natureza é transformar o que fazíamos encolhidos
raio de versos um poema desprevenido

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

carne de escorpião

antes do veneno 
provaram a carne
do inofensivo escorpião 
aqui dentro 

este coração asqueroso 
devorando os olhos
pico a noite 

eu o bicho comestível
de corpo borrachudo 
incitando 

letal
previsível
genuína  

paixão, 
o nome do filete escarlate 
peçonhento escorrendo pela boca 

sábado, 20 de fevereiro de 2021

línguagem II

se preciso digo sobre a vir -ada do ano 
ou do quarteirão que dei só para te filmar, 

esquece o tempo
ele tem passado 
e nos feito distância 
                   estranhamento) 

vejo os seus olhos bem loucos pedindo por nós, vejo os meus olhos bem loucos pedindo por nós, 

então, não são tantos quilômetros 
se os números 
e aliás 
as palavras são infinitas, 

imagina a borboleta vivendo em um dia 
desses o amor fantástico 
pousada 
em nossos ombros, 

teríamos de nos verbalizar
entre mais silêncio 

enquanto nos beijamos

ou a infinitude dos números 
- ou seja o tempo - 
em nossa boca 

varanda

é como se o antes 
tivesse nos modificado, 
as nossas falas 
são outras 
e outros são 
os nossos interesses

pode ser que ainda tenhamos 
algumas coisas 
em comum, 
eu olho para nossas mãos 
e percebo o quanto 
continuam inquietas 

eu vejo a nossa varanda 
e ela ainda reflete 
a luz do mundo 

turvo olhar

penso se posso suportar 
esta solidão
deste lugar na terra
tendo um coração tão delicado 

cavalgar a estreitar a rua
esta pedala atravessa o corpo - 
o meu desandado 

se o rosto ainda de lado
reage à contusão
do tempo
e das mãos
lentas dentro de um navio  

da longitude te vejo
ainda uma miragem
que flutua
sob as nadadeiras 

nada é sem eira
resta o pouco de vista 
encontrada em você

um mapa no meio do mundo
pedindo que eu siga 
embora não diga 
em qual direção 

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

feliz aniversário

abro a boca como um canivete 
que sai do bolso
 
essa feição de quem recebeu 
uma má notícia
no meio de uma festa 

onde todos esperavam 
que eu trouxesse o bolo

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

nuvem de pinga

o carnaval acorda
sob os seus pés 
você voa além da minha cabeça
despejando cachaça 
em busca do Sol

porque sempre há algo queimando

talvez pela nuvem de pinga 
que molhou as asas antes 
que buscasse abrigo
seu voo não pude vê-lo

mas ainda há sob os seus pés
o carnaval que precisou dormir 

mini bio

Gyzelle Almeida de Araújo Góes é poeta, carioca, nascida em 1994. Formou-se em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Atualmente pesquisadora do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB), trabalha com arquivos pessoais e poesia contemporânea. Publicou seu livro Amante pela editora Urutau, em 2019. Participou de exposições como o Poesia Agora, pela Caixa Cultural Rio de Janeiro, premiações como o VIII Prêmio Paulo Henriques Britto de Prosa e Poesia na PUC-Rio, possui poemas publicados por revistas, jornais eletrônicos: Plástico Bolha; Mallarmargens; Samizdat; Artefato Edições; Revista Toró...

sábado, 13 de fevereiro de 2021

resgata meu desejo último 
de te amar de repente
como se o nunca fosse o passado
e o amanhã fosse nosso 

porque sou refém da memória
e cúmplice das palavras

sou réu da vontade de ter você
nem que seja mais uma vez
como se fosse a única 

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

botão

meu corpo inteiro caberia
dentro do seu

perdão, 
meu corpo é infinito e ínfimo
mal caberia em suas mãos

mas o meu gesto
caberia dizer que cairia 
como uma luva entrando na sua 

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Éden

esse verso a galope
desembestadamente 
incansado

se movendo 
a quaisquer lugar
distante da boca 
e da secura 

- os dromedários 
sentem sede
quando acordam 

esperávamos as rédeas
bastardos 
dessa vida pouca 

nos botando à frente dos bois
com o desejo na mão

torcendo 
para que os dedos

não nos diga que é proibido
ao menos uma vez

colher essa maçã suculenta 
que enfeita teu corpo 

domingo, 7 de fevereiro de 2021

te vejo cavando 
com os dedos 

o buraco
profunda 

guardando uma mágoa 
que não é sua 

e de mais ninguém agora, 

te vejo enfrentando 
o mundo só 

te vejo abandonando 
o mundo

com os mesmos olhos 
que te vi amar

sábado, 6 de fevereiro de 2021

quarta dimensão

tenho medo é de permanecer na luz inerte 

pasma feito uma lâmpada
no canto de um quarto de leitura 

dentro do pavor além da sombra 
e da solidão dos livros
nos quartos apagados de leitura 

tateo a caverna

quem na luminosidade 
ou na ausência dela 

não se olhou no espelho e sequer se viu? 

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

flor de sal

estive disposta 
a demonstrar
delicada 
que o pensamento te incide

suas mãos 
distanciadas
ocultas as linhas
do destino nós costuradas

li nos poemas de Drummond
sobre a solidão 
dos números
e das cores
Van Gogh sorriu 
dizendo adeus

você desfalecia
não apenas na sombra
dos galhos
ou da ressaca
do outono no mar Mediterâneo 

velozes seus dedos
o percurso da estação

vento da paisagem
devagar a face
despida do amanhã 

restaurada pelo
porta retrato

no ardor
da noite introvertida
você o perfil do tempo 
as memórias coberta de flores

nos búzios

o hábito de comer placentas
já não descobre os búzios - coração 
de boi sedento
olham - olhos 
de tartaruga encalhada
não sabem da veia aberta
dentro dessa máquina de perder medidas
nem o teu rival mais conhecido
vira o rosto enquanto a rua você vira 
toma o café da máquina de perder o gosto
de ontem 
você sabe - ou desconfia 
que já nasceu 

domingo, 31 de janeiro de 2021

se eu fosse um rei 
de terno impecável 
e tivesse modos
de um jeito incensurável 

se por acaso 
conseguisse falar 
em público 
sem medo do público
ou se eu fugisse 
antes da hora 
do fim 

e se quando 
o meu julgamento 
chegasse
eu estivesse sentado 
num banco
de praça
com um sorvete de chiclete na mão 

e se eu fingisse 
que não decorei 
o meu nome inteiro 
e a paz que eu teria 
se eu não estivesse
aqui 

nesse mundo que nasceu da guerra
e se eu fosse feliz 
só isso 
e eu 
não quereria 
ser 
mais nada 

sábado, 30 de janeiro de 2021

Beirute

penso na fragilidade da palavra amor 
e te imagino me amando sem palavras
na beirada dos meus beijos 

sem sítio para chamar de país
sonho em retornar aos minutos 
em que a sua boca vira o pão 

e nada mais seria necessidade 
se eu vivesse desse abismo 
se me escapasse o equilíbrio 
e fosse à beira dos teus lábios o precipício 

trivial

e nessa quentura
você ainda toma banho quente
e me pergunta se eu quero
comer pizza fria 

somos os pequenos deslizes
que o destino não havia programado

nós dividimos alguns cômodos
corremos de nós mesmos
é engraçado como não tem graça
que o preço do arroz seja tão alto

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

bote

gosto do cheiro salgado
do verão respirando
por debaixo das pernas

seu beijo profundamente viscoso
desse choro que molha cidades
a minha se alagou

e durante dias ficamos boiando 
gesto de uma parada
no centro da rachadura 

faríamos disso uma vida paralela

insira o meu nome

você não conseguiria
falar o meu nome
em voz alta 

e ainda a vontade
assim como eu

em público você evitaria 
me olhar
enquanto fala e fuma

enquanto eu te olharia 
nos olhos
enquanto falo e fumo

decido não ser invasiva 
e desvio
a conversa e o olhar

você entraria como antes
em algum lugar
que não estivesse trancado

você trancaria as portas
eu abriria a janela e calcularia
o tamanho do voo 

você faria uma música
sobre despedida; 

seria o mais perto
que chegaria do meu nome

flores

me sinto como aquela criança 
de pavor nos olhos 
e de mãos buscando uma flor 

eu as acariciava 
e encostava o rosto no perfume 

eu amo as flores como a mim 
mas as vezes não fui delicada comigo 

eu me afetava 
como o mundo 
afeta as flores 

mas eu ainda me sinto aquela criança 
com o olhar apurado 
e com flores em busca das mãos 

olha só

te vejo cavando o buraco
corcunda 

guardando uma mágoa 
que não é sua 

e de mais ninguém agora, 

seu desejo liberdade 
te vejo buscando os poemas 

diante deles você sorri 

como se o mundo 
fosse uma brincadeira 

sem gosto você entorta o rosto 
e queima por dentro, 

te vejo enfrentando 
o mundo só 

e se afastando 
até de si 

te vejo abandonando 
o mesmo mundo

com os mesmos olhos 
que te vi amar 

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Welcome to the Rio


Welcome to the Rio


estamos frente à paisagem

os pássaros alheios

flutuam desgovernados

na ilusão de um amor suave
que não nos pertence

a estação anuncia o suor

causado por um frio contínuo
muita luz e azul

as trevas chamaremos poesia

pinturas no quarto
mansidão de seus braços

desconhecida textura

cuja falta de abrigo
descubro um lugar elevado

soletro devagar seu nome

em delírio na boca
meu suspense infantil

propenso a recortes do vento

Ao sul teu corpo
Verão teu rosto

27. Fev. 2017 

domingo, 24 de janeiro de 2021

solamento


embora banhada 
pelo suor do desejo
receio ser não 
completamente tuya 

quando tu 
me aperta
eu sinto amor 
que amor me nega 

não o amor 
que está nos livros
e me esfrega

o amor que almejo 
é solamente 
não estar sola 

e morro de medo disso
desse abismo 
que nos cavará à incerteza 

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

vastidão

tenho em mim todos os poemas do mundo
mas também
não tenho nada 

o que se chama vastidão

e tenho além de tudo 
o que restou:

o verso que apesar de ser o princípio 
não vê a hora do fim  

diário

inventiva
deito o jornal na cadeira 
procuro fogo
e com os olhos te encontro

está por ali orgulhoso 
do Sol eternizado 
na cor do dia e dos dentes 

atravesso a cozinha 
pego o cigarro e te imagino exposto 
íntegro de face acordada 

prensado entre os dedos 
discuto sobre o dia e ontem 
o passado café esquece dos assuntos 

te imagino frio molhado 
cavado no botão de linho 
- as vezes você me olha de fora 
desvia e entra 

e tem vezes que tu me define
enquanto encontro as palavras 

Toc Toc 
Você entrando 
Você saindo 

você e as previsões de hoje 
e café e nós 
mais uma vez 
para começar o dia 

avesso dobrado
o céu engravatado 
te parei antes da porta
para entregar um recado 
- a tempestade mais mansa
do que a rebeldia uivosos teus braços 
vem vindo 

e me diria sorrindo que o buraco negro
foi engolido 
então você vem

inventiva 
encerro o cigarro no chão
nua arrumo um motivo
mais se parece intervenção

procuro o fogo
seus olhos
um lugar específico para amar
o dia todo até notícias vazar
de uma manifestação

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Fonte da Saudade

escrevi alguns versos, João
difícil esquecer a força das suas mãos
ainda busco os poemas 
ainda que na Travessa
tenha dito ter parado com os escritos 
eu me pergunto como? 
se te como ali mesmo em pé ou se 
você tem se alimentado direito 
se ainda sinto vontade de te chamar 
para curtirmos a tristeza 
é por causa de que posso vê-la 
enquanto você busca uma forma 
fácil de sorrir 
sem que os outros percebam
se levanta e esquece de ir 
embora 
é por essas e outras que quando a rua
se tornou fonte da saudade 
eu sempre que passo me perguntam cadê 

domingo, 17 de janeiro de 2021

todas as cores do seu choro 
as 14 velas horizontais 
envergam a minha visão 
a estúpida felicidade 
a sua forma de degustar o mundo 
uma rosa que vive na sombra 
te descubro ainda molhada no centro
da sala e do meu âmago
te amo o amor nunca escasso 

sábado, 9 de janeiro de 2021

avanço distante do terror 
de encarar
os seus olhos 
na hora última do último vagão

juro quando você entrou 
em algum lugar 
além de mim
eu não tinha espaço para te aguardar 

e durante todo o tempo 
o que ouvira bater
fora o tempo 
do coração em estado de fuga 

(...)

desconheço a causa desse horror 
de encontrar você 
me olhando enquanto decido 

não querer ter de ir 
embora ficar 
seja tarde demais 

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

se ainda

não sei se ainda me lê
mas você deixou 
de percorrer

palavras condizentes 
silêncios em nós sondados 

quanto a este assunto 
tanto se ultrapassou

enquanto o bonde também passa
e o dia tem se arrastado 

não sei se ainda me lê
enquanto isto tudo 
vira distração

até mesmo as palavras 
sobrevoando 
as nossas 
atemporalidades 

viro as curvas
e piloto o coração desordenado 

disto eu falo 
sem que me distraia
e mudo 
de assunto

ainda paro 
aonde quer que esteja
e nos indago 
se quiser você ainda me lê 

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

as rugas das mãos

minhas mãos irão envelhecer mais cedo
do que o meu rosto, 
lembro do seu --- 

esse que revela 
a idade da pedra,

absurda de pensar que é possível
calcular o nosso ano na terra  

mas eu ainda vejo a criança,
acuada e sem saber o nome das ruas 
de frente para uma mala

pensando se ir embora é realmente 
dizer que cresceu