terça-feira, 26 de setembro de 2023

26-09-23

Hoje, chegamos do arquivo, era umas sete horas da noite em ponto, depois de ler Gertrude Stein no ônibus, eu me deparei com um dos meus pesadelos: um carteiro a me encarar. Tenho pesadelos com carteiros. O que é uma ironia macabra, pois eu sou apaixonada por eles. É o amor e o ódio, fuga e encontro. Medo e desejo. Eros, volto a ti. Você me compreende de uma forma torta, eu te entorto de um jeito incompreensível. Mas serena. Os olhos do carteiro, não minto, pareciam duas pitangas. Da cor das pitangas caídas no chão de terra. E eu, resignada, pois o semáforo em frente ao meu prédio é meu inimigo número 1. Descubro a eternidade, sim, menor do que eu pensava. Não imagino coisas terríveis, mas são infalíveis. Nós atravessamos, não olho para trás, não sou louca. Entro no quarto, tiro o vestido sem olhar para trás. Olho o meu móvel, me cai a ficha, mais uma vez eu esqueci de pagar o cartão de crédito. 

coca-cola

que nome estranho eu devia procurar
a etimologia desse nome
as tomadas para carregar os fones 
mas estou com a sua voz nos ouvidos
você me esfrega a sua voz nos ouvidos
ouço o meu nome a roçar
mas você me coça de um jeito
você me coca energética na tomada 
de uma forma que não é inventiva 
e não é leve nem aprumada 
mas tem uma forma 
de coca-cola no expediente 
e eu não gosto de coca-cola mas imagino 
mas eu estou sem você no trabalho
de te escrever um poema ou uma carta
ou qualquer coisa que você não leia
porque acho que se você vem 
quando te escuto ou quando sua voz 
me coça no meio das pernas
ou no túnel entre as costas 
você me deixa um pouco envergada 
quando penso em te escrever 
não vejo forma certa de dizer que talvez
eu esteja definhando ou nascendo
ou uma forma estranha e espetacular
de demonstrar aquilo, você sente 
aquilo o que não se pode disfarçar
ou cobrir com as calças ou vestir 
com o seu caçula mais novo o ALL Star 
mas eu sinto vontade de rimar as vezes
ir para algum lugar um deserto?
será possível pedir um gole de coca 
lá mas se você estivesse fico pensando
aqui comigo agora eu pediria um golfinho
opa um golinho foi culpa do corretor
da sua boca antes da sua voz me dar 
água na boca uma vontade de coçar
você dentro de mim assim eu me livraria 
das livrarias você aqui dentro te leio

sábado, 23 de setembro de 2023

23-09-23 

Quero começar um romance. A história de uma poeta e um carteiro. Cheio de lacunas. Uma história cortada/friccionada por cartas nunca entregues. As cartas extraviadas. Não usarei o seu nome, H. Um romance entre uma paixão e o delírio das cartas. Um romance impossível, ou não tão distante assim quanto parece. Depois do apagão de hoje, acordei para essa ideia adormecida. 
23-09-23

Depois de hoje, sinto que não tenho mais desejo de dormir. Não se não for para sonhar com o sonho da noite passada. Me parece um disperdício absurdo não viver o meu sono. 

F. vem até mim, me questiona o porquê dos meus delírios. Começo a tecer conjecturas sobre o meu projeto de doutorado, de repente, só existíamos no cosmo, atravessados pelos nossos corpos interessados/interligados. Ele me fere com os olhos de imaginação, eu não interrompo a minha fala por puro receio de acordá-lo com o meu silêncio. Sinto o seu braço me entrelaçar como uma serpente ama o calor da sua presa, e vejo a sua mão pairar sob o meu peito. Não há sexo entre nós, apenas a chama infinita do inferno. Suponho que ele queira ouvir o meu coração, não com o objetivo de se certificar de que eu estivesse viva dentro do meu sonho, mas para identificar a veracidade do meu amor. Se o amo com o além-corpo. Os batimentos do meu coração me acordam. Agora não faz sentido dormir se não for para morrer infeliz e radiante de amor dentro do meu próprio sono. 


segunda-feira, 18 de setembro de 2023

um milagre

você que me aparece
com os olhos de costurar solidões

venha me dizer 
se você está pronto, realmente 
para morrer sem fama

pois eu estou, meu amor
apenas com uma caneta na mão 

e isso eu te garanto, é um milagre

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Moebius

me acompanhe até a linha 
do horizonte

onde possamos 
cortar o trópico 
o utópico e o ócio 

o poema poderia findar 
dessa forma decepando 
as fitas de Moebius
os textos e as rasuras

mas você fez uma costura 
bem no centro
do meu coração

me acompanhe até a saída
mais próxima

acho que perdi 
o rumo ao sol
o sal da terra 
a direção 

domingo, 10 de setembro de 2023

a busca pelo retrato

se eu pudesse ter um mapa 
do meu coração, a minha presença 
nas ilhas não seria rastreada,

mas se eu me buscasse distante
das encostas, localizaria as minhas 
mãos enfeitadas de areia. 

destruo um castelo antes das ondas 
do Mediterrâneo revelarem a sua mágoa, 

construo uma ruína antes das paisagens
perdidas à minha passagem alheia. 

terça-feira, 5 de setembro de 2023

geometria do sol

posso te oferecer a geometria do sol
que há no vínculo das minhas mãos,
a sombra partilhada da solidão
ou o silêncio dos pássaros –
este o qual nunca esbarramos 

esmorecer na seiva da tua saliva 
ainda morna após um longo sono
ainda que o meu corpo esteja 
a palpitar feito as asas do canário
pousado neste cubículo iluminado 

posso te entregar as palavras e a beleza
não concluídas, ainda que distante
o meu gesto requer mais do que carícia
e sim a tua fúria de Capricórnio 

um cosmo na polpa das minhas pernas
entre-abre o espaço o vento o tempo
entre eu e a poesia, requerer da tua face 
além do amor o resquício do ódio

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

CAIXA DE FÓSFOROS

A memória do fogo. Antes do pó – ou da ferrugem do corpo –, o fogo. Anterior ao desejo, o que o nomeia – a sua chama incontornável. Do ato de comer-nos com as mãos em brasa), faíscas. A memória não hesita ao rastro do gesto e, por mais apagada que estivesse, persiste pela sua intensidade. A atração nos ilumina.

 

amar

como sentar-se

a lareira

 

contenta-te com a

inquieta e deformada

chama-

me

 

à frente

dos olhos

  

O exercício de reunir caixas de fósforos teve início a partir do contato com o arquivo de Foed Castro Chamma no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, situado na Fundação Casa de Rui Barbosa. O arquivo de Foed era intocado, abri as suas caixas cheias de fogo da memória. Meu corpo, esta caixa que se derrete pelo arquivo, ateou-se ao ofício de escrever poemas, labirintos. Dentro de caixas de fósforos criar a história do fogo, o meu.

As caixinhas são da marca Paraná, fabricadas em Irati, cidade do Foed. Ir a ti, Foed. Eu vou ao teu encontro. Me atiro.

Penso nesse exercício de lapidar esta memória atravessada pelo arquivo do poeta. Abro os seus diários sem pudor, degusto o doce-amargo. Remoo as lembranças, crio cenários, imaginários.

 

26 JUN 2023

O arquivo é sempre um abismo absoluto, cego e sensível. Sempre que vou ao seu encontro, desencontro o meu objetivo primeiro. Hoje, por exemplo, tive a pretensão de reunir todos os diários do Foed em uma só pasta. Nessas horas os meus olhos acariciam a paisagem. Quando me vi estava retirando grampos enferrujados de papéis, pilhas de ementas e anotações de simpósios de filosofia ministrados na UERJ, fiquei aflita quando vi aqueles ferros carcomidos manchando os documentos do meu poeta. Sou zelosa quando declaro desta forma que o poeta é meu. Mas trancado em caixas dentro de um museu, sinto que sou a sua amante. Cuido do seu acervo como uma mulher a preservar a sua liberdade. Por detrás das folhas, diversos desenhos que o autor em suas horas ociosas de eventos criava, retratos de rostos avulsos, confusos, entediados. Eu me reconheci em um deles, com o rosto compenetrado e um cigarro aceso entre os lábios. Por que você não me escreve um poema?

 

Risco um fósforo. Risco as palavras. Risco. Me arrisco no ato de fabular a memória. Meu arquivo. Antes do pó, o fogo.