segunda-feira, 30 de outubro de 2023

epitáfio

quisera morrer 
nos teus braços
dormente de vida dentro

de uma noite longínqua 
espessa de opacidade 
e rigidez

vibrar pelo peso íntegro 
da tua mandíbula 
tocando flauta 
dos meus ossos

quisera morrer 
nos teus braços
de uma só morte ímpia 

e renascer límpida 
vestida de camélias 
e cinzas 

suspeitar da leveza profana 
da tua língua
recitando versos 
sobre os meus vermes 

quisera morrer 
nos teus braços 
e amansar as vísceras

certa de que a vida 
deveria ser por fim 
– um epitáfio – 

sábado, 28 de outubro de 2023

quinze

estou esperando, meu amor
um convite para estrear no seu poema

que você –
em movimento fatal –
me diga que desistiu de morrer 

ou que fundou uma nova forma
que tendesse a nos dizer 

que está tudo como dois e dois: 
são quinze 

estou esperando, meu amor
um convite para estrear na sua vida 

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Vestida de gala

Aguardo no parapeito
Dos girassóis o rosto
Da morte ou a vida

Segunda-feira
Encontro-a desfalecida
Alguns rostos-vultos avulsos
Empapam a minha vista

Enfio-me no retrovisor
Visualizo um rato
Ou a performance de um roedor
A atravessar o caule de uma figueira

Me trancafio de prata na roleta
Finjo vestida de gala o meu funeral

Que apesar de singela me cheira
Morta-natureza os meus dedos
Estão exaustos

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Pulmão plácido

Delírio. Uma inofensiva palavra
a palpitar no pulmão plácido de um rio
às margens, memória de um imaginário 
suspenso – corpo enforcado. 

O seu rosto. Uma ofensa às tardes
entre as quais o sol se esconde, você 
que surge feito uma única bicicleta
em uma ciclovia deserta, inclinado. 

Você. Que se esquiva das palavras,
das imagens, desprevenidas. 
Como se fosse breve o tempo dentro 
de uma rima, porventura, desinibida.  

ficção-morte

a morte de saudade foi a morte 
mais duradoura, o coração dentro 
de um tanque afogado 
debaixo d'água.

das mortes catastróficas –
morri de esperança, sabe 
quando se espera neve no deserto?

e dormi em pleno terminal
à espera do passeio do trem 
sob meu corpo na hora de pico. 

vocês aguardam que eu confesse 
que eu morri de amor... 

é nessa morte 
que me sinto viva, foi morrendo 
de amor que eu finalmente nasci.

terça-feira, 17 de outubro de 2023

uma chama disse sim a outra chamma

não é a chamma
que me chama
sou eu que a chamo

negativo

a caixa me olha

eu olho
para a caixa. 

a caixa tem um olho
literalmente,

ou seria uma chamma
dentro de um fósforo? 

esbarrei em caixas, caixas toda a vida
e em toda ficção

mas não é ficção e não é vida

pelo contrário,
dentro dela não o mistério

a revelação
(a dobra da dobra) 

invenções

produzir além de produzir
não produz

se o produto
é a produção

o meu projeto 
é a invenção 

dobra

sempre estive muito presa à dobra 
esta obra

não coincide 
com a minha dobra 

uma caixa disse sim a outra

o corpo é uma caixa? 

não,
mas habitamos as caixas 

útero, casa, pele, documentos
para onde vamos? 

quando começou o mundo
uma caixa disse sim a outra 

encaixe

ter de produzir
um corpo
uma caixa
este gesto dentro de um museu

ter de produzir
uma memória 
uma cinza 
este lugar que nem você e nem eu 

nos encaixamos 

o que fizemos das nossas cinzas

produzir caixas
dentro de caixas

caixas
de fósforos
de arquivos

teu corpo 
em chamas

o corpo
me chama

me chamma
em teu corpo

o meu corpo 
o que fazer com as cinzas? 

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

gota de pólen

I

há tanto a ser dito
meu amor 

que a poesia 
não é um poema

que o meu amor por você
não é um poema

mas um delicado 
acidente 

entre dois versos

II

ou duas flores 
em um mesmo quintal 
em busca de um rastro 
de sol por inteiro 

antes de florirmos 
e ferirmos a angústia do tempo 
paralisado em nossos caules

tanto a dizer eu te amo

mesmo sem trocarmos
sequer uma gota de pólen 

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

cruz

a tua palavra cruzada 
ainda fraca festa fresca

você me vem peluda pomposa
bondosa a tua forma de abrir

os braços
a tua crista

como quem vem determinar 
qual palavra inscreveria o meu corpo 

crucificado ao teu 

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

outubro

chamar de nosso
tudo aquilo 
o que perdemos

a começar por essa noite

você se aproxima
como quem se curva 
a uma outra voz 
do outro lado do quadro 

e eu me confundindo 
com os teus
passos 

o que você quer me dizer? 

chamar de nosso
este encontro
impossível 


domingo, 1 de outubro de 2023

molduras

com merlot na taça

na memória teu estrago 

você me questiona se quer 

que eu te leve à casa


eu digo, meu amor

eu estou no controle


várias molduras na sala

mas por que a tua foto

não está comigo 

era tudo o que eu queria esta noite


tudo conspira a favor de nós

tudo conspira contra nós

e eu inspiro pelo teu encaixe 

dentro da noite você se despede 


você me pergunta 

se eu já estou pronta

e eu sorrio e acho que você já sabe 

a resposta


você sabe e eu sei que eu sei 

mas as vezes eu até duvido

mas você sabe

que até você duvida


mas você sabe e eu sei que eu sei 


sem merlot dentro da taça

e em breve você voltará para casa


mas você sabe e eu sei 

as nossas fotos 

não se encaixariam 

nas molduras