quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

gastei uma garrafa de Dom Bosco 

era o lançamento 
de poetas do Brasil 

quanto à mim
estou lançada no mundo, 

os órgãos se reviram 
na beira do intestino

não é que dê tempo de recolher 
o que
deixei entranhado 

só posso dizer discretamente 
do seu jeito, 

é o mistério das árvores 
à espreita fazendo sombra

assim remoo o que vim fazer 
aqui tão desprotegida

te olho de um jeito que me parece frágil 

visto da minha boca 
eu pintei a sua 

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

ampulheta

à tudo o que não pude calcular 
com os
dedos da mão 
e porventura não deixei cair 

aqueles que não temem 
a hora da lágrima
talvez 
sejam os 
mesmos 
que aguardam
o indício da queda 

eu vi a ponta do planeta 
amarelado 
apontando 
para os meus dedos 

eu posso contar 
quem amei 
sem o 
receio
daqueles que prometem 

quando me dei 
por perdida 
quando 
além
dos 
meus rastros não só 

eu os 
havia 
deixado 

alguém me carregava 
como dromedário 
naquela areia 
relutante do tempo 

refletir o 
amarelo 
do planeta 

posso voltar ao dia 
em que vi-o  
seu rosto 
se projetando 

partículas mínimas macias 
a firmeza advinda 
do seu gesto amiúde 

inteiriça me permitira 
ser conduzida
pela força do desconhecido 

devido à sede 
o silêncio 
era mais
demorado

sem contar pois 
deixara 
de usar 
as mãos 
segura 
para beijar-te 

quem mais 
poderia 
dizer 
do meu descuido acalorado?  

o que quero falar a ti 
da minha entrega 
é que fora
em seus braços
a chegada à uma nova terra 

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

te amar 
a ponto 
de cingir o Sol

perder 
à vista 
dos olhos 
e dos óculos 

o protetor e a vaidade 

te amar 
no asfalto 
no meio 
do meio-dia

de pés o corpo o chão descalço 

amar você 
com zelo 
assanhar os pelos 
secar a língua 
com o corpo os pés no chão 

te amo o amor que não é covarde 

domingo, 27 de dezembro de 2020

a paixão me causou o mal estar 
dentro das manhãs sadias 

me causou o impertinente delírio
: acordo desacompanhada 

a mesa melada de tinto e as uvas
podres de anos no jarro 

derramou o que eu tinha de água
é de paixão que eu sinto sede e repulsa 

é de paixão que eu me destruo 

sábado, 19 de dezembro de 2020

luz e sombra

da pele nada escapa 

a suavidade das tuas palavras 
escolhidas 

a projeção da tua luz
espantada 

a escuridão se revela 
dentro da boca o céu está piscando 

fragmentação

minha unha se partiu enquanto eu
procurei te escrever 
pensei então em usar essa desculpa 
para falar do coração
as pessoas morrem de verdade
quando o coração literalmente quebra
quando eu digo que minha unha partiu
você não pensa que ela foi embora
então porque você acha que um coração
não pode realmente ficar em pedaços? 

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

a concha e o mar

a coragem é sobretudo
o que não digo 
o lapso do verbo 

a prudência 
ao colocar o poema 
em seu lugar

abordar mais alto 
as coisas que não diria
em seu ouvido 

o oceano quieto 
ao lado de uma concha: 
a firmeza de ecoar em seu interior

através de um ruído 

domingo, 13 de dezembro de 2020

à luz do lampião 
nós somos dois felinos
de unhas enganchadas 

posando 

para os bichos velozes da noite 

sábado, 12 de dezembro de 2020

poder partir sem despedir

posso te escrever uma poesia 
com a bruta carícia do mundo 
questionar sobre a delicadeza 
ou o que fizemos dela 

nós os apedrejados 
pela própria leveza 

poderia te dizer sobre escrever o poema
ser mais simples do que pagar uma dívida 
que não nos esqueçamos: 

ainda somos devedores das palavras 

ainda não te escrevi um poema
isto o que estou a fazer é juras 
o gesto do mundo é mais injusto 

nos incobrindo
nos descobrindo 

nós as malas vazias dentro do porta malas 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

nesta manhã não sou pássaro

tem o peso dum tanque 
de roupas molhadas 
desbotando
o espírito 

os canhões enferrujados 
partem; 
debaixo do mar 
a terra seca

o rosto 
dorme à dureza 
dum algodão 

o tempo entrou
sinto 
no rastro 
dos astros 

atento aos buracos 
posso assistir à natureza 
a ponta rígida 
da língua 

por esta brecha 
o beiço banhado; 
alçar pegadas  

os beijadores
os pássaros 
das flores úmidas 

mas nesta manhã 
chego a ser 
ainda 
um chão 
que não recebeu arado; 

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

o que tenho a te oferecer são as cinzas e as cicatrizes

posso escutar os latidos 
do seu coração

o bairro cresce 
me movo rente à lentidão dos caracóis

sua língua fala: 
me diz em segredo  

ainda não sei se do céu 
alcanço a sua nuca

o corpo dentro do seu  
ou nós onde caberíamos 

aviso ter hora
o amor é um beco sem saída 


domingo, 6 de dezembro de 2020

a ferida da noite 
matituna 
no corte/recorte do rosto

ao longo da faixa; do sopro; do dia 

a retina prismada colada 
à monocelha
o sono atrasado 

somos as cascas
presas ao corpo

não cicatrizadas 

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

a solidão não tem nome
mas lambe 
pelas margens 
enfia os dedos 

já a minha língua
se enrola 
feito um trapo retorcido
envolto em tua cintura 

ainda a mesma carne 
o corpo a corroer 
ensimesmado 
o gesto pasmo

somos à luz
do silêncio comovido 
a estadia do verbo impronunciável 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Gioconda

Gioconda 
nunca exibiu os dentes 
se ameaçada 
finca as suas presas com os olhos

engole comprimidos 
de boca fechada 
vela o segredo; a dolorosa 

seu sorriso  
aos curiosos se mostra 
como chorar ao lado de um quadro 

quero-quero

hei de falar sob o corpo-vertigem
até sobrar sede e o pigarro suturar 
o ato da pronúncia abrupta 

hei de gesticular frente ao delírio
oscilando entre a ficção e o dia-dia 
como os pássaros equilibristas
fazem com os galhos contorcionistas 

mas diferente dos ninhos não descanso
dentro do seu corpo, alcanço as suas penas 
me debruço sobre o músculo do poema 

domingo, 29 de novembro de 2020

codinome

miro ao espelho a figura 
do meu sentimento 

penso que amar outra que não eu
é o grande (e cansado) retorno 

lido com o que eu vejo com menos
nitidez do que quando escuto o seu nome

peço ao espelho algo 
para que possa esquecê-lo 

terça-feira, 24 de novembro de 2020

apesar de que
não envie mais cartas 
ao me corresponder 
com esmero vigio e aguardo 

hoje tenho gavetas com trancas, 

me agacho no silêncio
da ânsia prometida 

nos instantes violentos a vida 
que me ensina a ser mais delicada 

sem a intenção de me ter afeição, 

esquece de que acordo esgotada 
pós êxodo 
mostro à rua 
meu coração frouxo 

se recordo ser o mundo a casa, 

sempre é a primeira hora 
da compaixão a raiz 

que caça além do abismo da terra 
a hora última 

ainda que eu contasse à todos mais alto, 

quem diria 
meu cabelo cresce junto ao dela,
que eu contei fio por fio

sábado, 21 de novembro de 2020

Anúncio

se acendam todas as luzes da cidade
o fogo de nós irá arder as chamas 
os nossos olhos espelho 
de um lugar lindo dentro da gente

quando as maçãs estiverem maduras 
nós seremos o paraíso

os dedos serão confundidos com lunetas 
seremos tão felizes que será possível tocá-la - 
a felicidade 
- fruta exposta

nosso baile; nossa luminosidade
irá acordar toda a cidade

flor no asfalto

você brotou 
em uma hora 
terrível 
da minha história 

como quando as cigarras 
decidem entrar em um jarro 
no meio da festa 

uma pétala no meio do caminho: 
você parece uma flor no asfalto 

ainda hoje não sei 
se o tempo atropelou
se meu coração

(...)

ainda abre passagem:
o beijo estatelado 

você me conheceu 
em um instante em que 
o terrível 
se tornou bonito 

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

pintura

do seu rosto desmanchava 
uma água sem cor pegajosa 

eu te adoraria até o final 
desconhecendo onde dissolvo 
se você retorna 
 
pela veia do rastro pusilânime 

dentro do sexo
na tela o retrato vasculhado 

até então eu desconhecia
o rosto do amor paralisado 

despido; exibido cenário 
meu aceno sua postura cravado 

me retrato escorro e pinto 
das mãos segredos são quadros 

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

[fragmentos de vôo
/asas] 

eu já nem sei o que será 
agora

(...)

começo a rasgar
pa
péis 

deitada sob 
a folhagem; peito 

poderia ser só impressão 
mas 
sinto 
estamos 
nos despedindo

teu sono lentidão do vento 
me pede para subir 

teu ronco secura 
nós dormimos por muito tempo

agora 
estou A4

sei tremer 
que na verdade
não sei explicar
-me

ouvi teu sorriso
 e o meu sorriso

entro em combustão

lembro da nomenclatura
verde e azul
daquela paz de paisagem amarela

você me segurava 
ou não me esperava?

terça-feira, 10 de novembro de 2020

tudo o que for cavalos marinhos

sob o seu sorriso
uma mandala de crepúsculos
debruçados, os bois bebem o leite
do peito de um jovem cobrador

espelho o coração de uma luneta
e me parece cascalho o gesto
de um manobrista sóbrio

tudo o que for cavalos marinhos
contidos na palavra,
ainda ontem me vi
buscando o seu animal 
nos signos chineses 

e eu nem sei a sua data 
nem sei a sua esquina,
nem sei se me apaixonei pelo
homem ou pela cabra 
o poema no tom 
dos dentes de um fumante 
parei para te tragar
você talvez comemore só 
ano que vem
ou mêses atrás
ou tenha se esquecido
de que há festa com o que nos sobrou 

ainda hoje eu descosturei
a minha casquinha
ouvia você dizer 
que o amor é como uma livraria 
depois que você tem o livro em mãos
é preciso decidir se vai lê-lo 
ou pedir para embrulhar 

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Dorme, meu filho


Dorme, meu filho

pois a sombra reclinada 

é somente o encosto da cama, 

deleite do teu descanso 

 

Rostos às luvas

expostas fraquezas tuas,  

descubras 

o mundo moço 

na palma das mãos

 

Quererás dessa mão dormente 

apoio,

verás o rosto 

em desespero, 

mas serão gigantes 

os teus poemas

 

Há de encontrar face

a te perturbar, 

a solidão não será

mais somente tua,

mas de um desconhecido

 

Ao desvendar a glória

acreditará estar vencido, 

talvez pelo ego 

que te definhas, 

talvez pelo gosto agridoce 

no caldo da boca

 

Dorme, meu filho

amanhã sabemos que virás

ontem tu sabes que já foi

agora tens o sonho de um menino


domingo, 8 de novembro de 2020

nos engole

Mandei uma mensagem:
Tua poesia me sacia 

Sei da sede e do amor pela boca embebida 

A cidade nos engolindo

Amo teus versos

Assim como amar a ventania 

Se perguntar por onde andei? 
Sigo lento tuas ruas 

Trocando papéis

Desesperada dentro da cidade

Nos engolindo

No vento do gás vento, dentro torneira sem água: no teu coração o sentimento aquático 

Foi assim que descobri no teu poema um pedaço perdido de terra

sábado, 7 de novembro de 2020

ser antes do querer a luz vermelha

quero ser antes a mulher que escreveu 
na beira dum pedacinho de mapa rasgado 
chamar de estado algo 
cativo ao silêncio distraído 

quero ser para você o que seria à mim 
a esfera do brilho inteligível
oco órbita dos astros  
galopando ao som de pássaros levianos

quero ser para mim o que somos 
além dos famintos túneis
cavando a solidão dos vagalumes 
transe das eras 

não quero ser mais nada 
além de saciada pela palavra
seca dentro de um abajur 
no centro do coração de um âmbar 

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

todos esperavam pelo poema número um

todos achavam 
que eu não duraria tanto
que a esse ponto não me atreveria 
a romper o gelo seco a preparar mais uma

isso não quer dizer 
que não esteja cansada
disso eu sei mais do que todos 
que esperam espantados a minha durabilidade

para dizer a verdade eu e todos 
não esperavam
que a essa hora eu estaria aqui
em qualquer lugar escrevendo

para ser sincera 
eu estaria escrevendo
em qualquer lugar
mas que chegaria a esse ponto
nem eu esperaria 

terça-feira, 3 de novembro de 2020

fiz uma longa viagem

avistei a curva do tempo
no seu corpo

pensei em como a vida é cumprida
e o amor tem suas paradas 

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

quero findar essa noite 
acorrentada 
de enfeites  
nascida do meu umbigo 

esse fio-entranheza que me une
ao ninho de espuma 
descende do meu ventre, no centro 

correr pela sala varrida 
não necessariamente olhar para os lados

nessa rua mora um bicho
que se chama vontade 

quero brincar com o seu relógio
como se o tempo fosse tudo
o que não esperávamos 

quero não querer nada além
do desejo 

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

jardineira

não posso dizer 
que te amo 
sem tremer 

que a rua se tornou 
pequena depois 
de conhecê-la, 

minha cabeça é povoada
pela imagem de você
uma rosa vermelha
no meio do povo 

e eu tentei preservá-la 
do alcance 
dos pés que ameaçavam 
esmagá-la 

mas como poderia alcancá-la 
se não vi mais o seu rosto 
se esbarrando entre os rostos 

se apesar de que tenha me apegado
às memórias
sinta falta do bafo do dia
espelhado em seu colar antigo 

só quero dizer 
que te amo 
sem temer 

que a minha vontade de te proteger
é a minha fraqueza 

uma rosa que colheu o próprio plantio 
seu gesto bravo de sobreviver 

ainda hei de te rever
à sombra dos pés, 
das mãos 
à face do amor que não treme/
não teme 
o alvoroço da multidão 

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

não tem parado de chover 

há um pouco de nós no reflexo 
dos postes no fluxo desbotado 

desse peso entrecortado
que nos leva para casa úmidos 

há tempos não vejo o sol
e não o sinto

tem vezes que acho que a minha poesia
está encharcada e não quer sair 

então eu me deito e ouço
a chuva contando: 

há tempos não sei o que é ir embora 

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

desterrado

em meu coração: 
dois terrenos
conjugados

de longe 
se nota 
o lado vadio

num piscar 
se avista 
a distância, 

ainda há um lugar 
seguro lá dentro 

não costumo deslocá-lo:
se chama 
desterro 

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

mel

do corpo o que mais usei foi a língua
não esqueço de lembrar-
à ti, recuo 
deleite 
a lucidez do gesto 
estilo, paisagem  
o que mais galguei foi o sensível 
corpo encaixado 
à fineza da boca 

domingo, 18 de outubro de 2020

Em memória

a corrosão dos olhos dela invadiram 
o meu papel no mundo, adorá-la 
e esquecê-la, assim vivo em equilibrio
imperfeito; 

assim como diriam os leitores 
de mãos, as linhas não mentem

mas adorá-la eu conseguia no simples gesto
de pensar, mas esquecê-la, para isso era
preciso agir; 

eu me enganava se pensava
em pensar em esquecê-la, duas, três 
ou mais vezes 

tinha de usar a minha cabeça 
para outra função e assim
chegar a algum resultado semelhante

satisfeita eu só seria se tivesse de lembrar 
de não esquecer de adorá-la, 

desse modo
eu não precisaria pensar 
em outra coisa: 

ela e os seus olhos corroídos
mais nítidos soam (na minha memória) 

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

falarei daquilo o que ficou, das horas dormidas

no alpendre da pedra afiada, o filete coagulado

de sangue ou batom, da cor expressiva que nos

atormenta respiro réstia do rosto, 

a sombra de um amor que mal se comoveu,

agora o que nos resta é falar daquilo o que ficou,

das horas sem sono, pedra macia, do gosto

de ferro do vermelho, da falta de gesto,

calma dissimulada no sufoco, do corpo 

que além de amar pouco viveu

terça-feira, 13 de outubro de 2020

úmida

logo o sol se esqueceu do céu
nós nos secamos
eu canto para você acordar
te seguro pelas pernas

pela escadaria seu cheiro evapora 
você esqueceu que dorme 
com a respiração de quem 
curte meu tom, está tarde 

você se esquece de mim
mas eu ainda canto
sob o seu olhar seco a minha voz 

domingo, 11 de outubro de 2020

Nua

Lá estava eu, de braços cruzados, segurando firme o coração que por um triz batia à sua porta; de botas cansadas e lendo o welcome to hell no tapete trivial e ainda úmido da chuva na sua entrada. Há recordações ainda da miserável nicotina querendo me ajudar a morrer de forma mais lírica do que em frente a uma porta encardida e quiçá mais rígida do que o seu pau em minha boca que pechincha um bocado de absolvição. Seu pau em minha mão. Seu pau tão em mim e essa porta maciça fodendo a minha entrada. Welcome to hell você diria mesmo sabendo que sou monolíngue e do meu espírito pagão. Seu pau em minha mão. Você me ofereceria o sofá-cama e o dilúvio que mataria a minha sede não se encontra em copo d'água. Nós saberíamos. O meu coração preso entre os braços era quem mais sabia, mas sabe-se lá se a água em festa na rua não serviria pra lavar minhas mãos.

Lá estava eu, nua, na rua, aguardando absolvição

tão raro quanto uma língua 

que eu não conheça 

sonhei que enfrentava um vampiro

de dentes macios

no sul de alguma casa

que entrei pelo teto

ninguém me conhecia

mas isso não é raro

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

passarinhos

desenho pássaros, 
gosto de inventar cores 
nas asas deles, eles são pequeninos 
e cabem no meu traço
mas eu nunca observei um pássaro
de muito perto,
eu os via de longe
e preferiria assim, 
só a miragem do seu voo
a paisagem do meu pouso 
na asa de um passarinho livre
beijando o vento e cortando
os meus versinhos, 
desenho passarinhos
porque nunca desisti de crescer 

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

imóvel

me contento com o rabisco 
que fiz do seu rosto grudado 
ao cós da parede, 

tem o rosto virado às mariposas
ouvidos colados 
não faço ruídos, 

mas o seu coração é o mais curioso
está protegido por uma rachadura 
que não desmacha 
quando esfrego a unha, 

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

leões

antes de completar trinta 
os poetas fecharam a boca 
foi um grande susto para a cena
ao invés de malditos 
preferiram que fossem chamados de gênios
há um grande perigo em guardar os leões 
eles não cabem em gavetas
ou em cômodos abafados
há um grande risco em domar os leões
nunca se sabe quando a fera está sentida 

as minhas digitais foram queimadas

a cidade parece 
céu estrelado
no chão 

arranha-óculos 
com a poeira
sem olhos 

a cidade parece gigante 
visto do meu corpo

ovo no asfalto frito 
vejo além do cinza 
o sangue meio-fio entre a fumaça 
a sua boca 

não me volto às paredes
entro nelas como quem a placenta
decide usar o martelo 

sou da cidade RG
risco grave  
contra regras 

a cidade é para mim
o que nunca morei 

sábado, 26 de setembro de 2020

núpcias

imagino que me olha enquanto o beijo dura 
a estética do lacrado que fura 
os olhos sem brecha,

largo como a manhã de uma festa 
ao me beijar me olha avisto 
meu corpo o cenário as núpcias 

vestida de relâmpagos,
assinalo o juramento 
porque me imagino nesse estado

e te juro meu caro,  
ainda que o caixão se feche 
não haverá beijo nosso que a morte encerre 

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

os outros

analiso a beirada dos livros a fim de ver 
até onde eu cheguei

sonhei com o morcego-homem 
ele finge que ri

o outro está ainda em travessia 
os cadernos são rosas 

as mulheres com as suas analogias 
posam a cada 2 minutos 

grãos de areia na sola 
beijo frio de cerveja choca 

você me entrega os números 
num guardanapo fino

mas eu não me recordo 
como posso saber o seu nome?  

ainda tem o outro que se veste de carteiro
me manda áudio com a voz de um motor 

eu me aproximo outra 
esse meu outro passado 

ainda estou atravessada 
faz parte do meu linguajar 

diz que vai me amar como Adão 
ainda outros virão 

domingo, 20 de setembro de 2020

dizer 
te gosto
deslizando 
na vertigem 
das curtas 
alegrias 
ele lambe o meu rosto 
aqui de baixo ele me parece maior 
ele me lambe sem calma
sem pressa 
tudo poderia ruir 
cair
mas ele continuaria 
sob o meu rosto
eu me reviro 
ele continua a me lamber o pescoço
ele não me deixa dormir
ele não descansa me tendo ao lado
tão fundo ele alcança com a língua
o meu nariz 
é tão macio o seu gesto sob mim
eu sou tão sedosa depois dele 
e sem ele eu não teria o mesmo rosto
ele dos olhos aquarelados 
continua a molhar o meu rosto
eu o afasto para ver a nossa reação 
quando abro os olhos ele está dormindo 
ao meu lado com a boca úmida 
o meu coração empoçado 
as minhas mãos escorridas 
eu poderia dizer que depois dele 
eu sou mais água, fonte 
mais gosto saliva sede
saciada, eu sou a boca que não para 

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

não terá fé nenhum dom 
que me arranque dessa labareda
eu assisto o café na mesa
molho o biscoito
discuto sobre os filósofos
que ainda não começaram a sofrer 
esse mínimo tecido no inverno
as rosas de enfeite 
o gole de amor que você assiste
enquanto deita sem rancor 
é de pérola a boca daqueles
que se fecham dentro do poema 

terça-feira, 15 de setembro de 2020

os poemas pararam no boteco
riram do escárnio
saíram sem pagar
na rua dos Cataventos
despiram com os olhos as pregas
das mulheres e suas saias nos joelhos 
era amanhecer
os poemas partiram para os arcos
trilharam sob os bondes 
passam rápido 
e quando se avista o fim da linha
os poemas nasceram 
1.0

chego à praia, coisa frenezi, uma tontura de chegar, subversa, digo, inteira imensa, de súbito De espuma grama e sal Bem que arranco uma âncora e nos pés uma corrente de corais me avança, bem certo que de espanto afundo de boca aberta. Gosto de gostar um gosto azul do céu do dia da praia, quando finca a cicatriz na cama da pele, faz sol que tem gosto de verão na boca Escancarada, quando a gente avança A distância fica maior, mas tem vezes que o gosto da terra é de um Açaí Maduro, e a infância um destino. 

sinto não ter chegado além do sentimento, e me sento indescritível por que Não poder tocar as palavras O mar amortecido, o que é que diga sinto muito. volto à imagem da praia ressecada, molhado a pele Em grãos macios, nuvem erguida embarcações, mais distante do que eu, o corpo. 

guardo no bolso o jornal aguado, e as letras uma fotografia 

o mar e as pedras, Duas bocas, os beijos aos berros de espuma e uma alegria me confunde com ? procuro palavras. sinônimo de tristeza é esmorecimento, e por não me sentir triste Acho que o sinônimo do meu sentimento não tem nome. mas decidi dar nome à praia e digo imagine Se a gente fosse dar nome a tudo o que encontra, Achei curioso que tivesse decidido dar um nome à praia e soube que era vontade de denominar o que eu sentia, e achando lugar nesse nome, acharia meu lugar no mundo Mania achar que no mundo eu tenha nome e mas não ache lugar  
2.0

que susto foi quando te perdi, e sei que quando digo que perco Falo da tua parcela tua fratura imagina praia Grão a Grão e tu o grão de metade da praia, então faz parte a gente se sentir partido, sentindo deserto em frente ao mar É que seu corpo foi lançado Então estou me perguntando E você? eu sinto lá no fundo 

as vezes costumo contar, fazer as contas perder as contas mesmo que, voltando à infância, tenha sido dispersa quanto aos números, mas eu conto os dias Quando vi numa notícia números maiores do que calcular nos dedos, vi os números dois mais dois ser dois dois, mas é que somando achei que dois números juntos fosse outra coisa, e tem dessas coisas que vão além dos números

4.0

(...)

5.0

sabe quando se descobre um cheiro novo, e sente mais do que dá nome, é feito assim que era a praia até que quis dar nome Os irmãos. praia seca, guela fluída Lembro de afogar de boca aberta, dizendo de um sentimento arenoso, desse estou móvel. quando o céu escorre faz tremor de acontecer no clima da terra uma depressão, mas sentir a firmeza da onda dá certeza, gosto de açaí na boca do céu criança. faz um tempo que não vou à praia, mas guardo na Bagagem espuma, e quando o som toca os dedos shhhhh

é que tinha cinco anos quando isso aconteceu E agora? pergunto é que me sinto perdida também. mas a praia de encontro e dava nomes e foi assim que soube Sentia um Sentir procurando palavras

TOMAR NO CU

pensar a poesia o meu sair comum
de si 
ou 
de mim?
essas palavras são muito oblíquas 
o eu confuso meu, É por acaso 
a gente? 
"encontrar o lugar" de onde 
você tirou esse? 
foi q eu esqueci o
o isqueiro
lembrei dos teus olho Largados na pracinha
e depois eu fui
tomei naquele lugar 

mas todo vinho é barato
se pensar no tanto de pé que me pisou
- é mais ardido com amor - 
dizia a placa 
EU NÃO QUERO IR 
usei muito
sem ter que dizer que to indo 
fazer meu drama pedir pra você...... 
sabe que não vou mais nada 
além de 

os cães uivam quando estão tristes

o segundo sol não chegou

a terra é tão redonda que você olha 

para mim como quem nunca 

tivesse voltado 

o chão se abriu dentro das lavas 

os elefantes não esquecem suas crias

morrem chorando

a fêmea come a cabeça do macho

as pontes caíram durante a corrida

ciclistas na orla

ondas destroem o vilarejo

e uma menina procura o seu gato

o gato está dentro de um bueiro 

descobriram uma fonte de vida 

no inferno de Vênus 

e na sua beleza a Terra

domingo, 13 de setembro de 2020

hora ou outra você viria como quem 
deseja me dizer querida
não vejo você 
a tanto tempo 
não lembro 
do seu rosto 

eu simplesmente não respondo 
de primeira e nem na segunda
hoje ainda é domingo 
e então talvez na terça 
já tenha algo a te dizer

por enquanto paro para escrever
bebo e penso em dormir  
é muito pensar 
ter algo como resposta

algo que depois de tanto
e olha que nem falo só de tempo
eu me sinto bem 
em não lembrar 
que você existe

mas como eu disse uma hora ou outra 
você viria como quem deseja

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

ondeavam acossadas nove estrelas
na pedra fincadas, acridez 
embebida sua ereta se inclina 
sob a minha guelra esperneada, 
sou o puro óleo dos peixes 
sabíamos pouquíssimo do nada 

ouço pelo buraco o roçar nádegas
tumultuadas, me coço a noite toda
vontade de te contar a minha ambição,
pensei que do colchão nós poderíamos
nadar até a primeira barca
sem nos soltarmos 
atracadas 

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

esse título é provisório e mais uma vez eu não termino

João, eu falei dos corpos
do quanto os nossos são estranhezas
e o quanto nos desconheceremos 
dos espelhos sustos em banheiros pútridos 
e o cheiro de dentro dos dentes 
da pasta branca, de arder na cama
e eu mal citei as dores porque você sabe 

Sabe, quando eu me dei por mim 
eu me peguei rindo zombando fazendo graça
era uma hora que não sabia se dava tempo
se por acaso poderia voltar e sempre 
mas sempre me pergunto para onde 

E eu acho que eu não me dei por mim 
não completamente
foi um daqueles surtos vertigens
quando a palavra voadora da boca 
a gente não consegue se segurar 
a gente foge normalmente 

As mãos foram desenhadas 
para fazer carinho em você 
e eu acho que eu estou precisando disso
de ficar um pouco na sua
porque eu estou cansada, sim 
vê se me pinta 
e eu nem sei ainda se é hora de dizer 
se é tempo para fugir 
mas não tenho para onde 
o corpo-vertigem da palavra-poética 

em si as palavras me saem sem forma

dizer 
te adoro 
sem deslizar 
no fundo das coisas 
retorcidas 

terça-feira, 8 de setembro de 2020

algo me escapou, 
mas olha a poesia  
soando mais simples alcançar 
assim a palavra 

algo do imprevisto 
fez gesto dentro do corpo
e eu fiz tremer o gesto 
feito se por espanto
arranhasse o mundo, 

revelar a delicadeza 
ainda no berço crescida,

você já viu a traça quando encontra a luz? 

e há quem diga sem temer 
que as cascas estão à venda 
que a faca é feita de corte 
que o corpo é estado 

você já viu o silêncio? 

quando os olhos carne viva  
a manhã em frente 
o verso se retorce 
inocupado 

ainda somos os mesmos ausentes 
que ousam sentir 
o pavor da linguagem 

desumanização

fachadas, comum era ver o que existia 

do bangalô pendurado nas grades


imagens semelhantes, e ali ou na calçada 

seguinte qualquer que fosse o destino era capaz 


que o nome de flores miúdas na pedra soluçassem. Sol

acima dos


quarenta, sempre pintado. o céu está me


engolindo. afundo em sua boca.



segunda-feira, 7 de setembro de 2020

6:54

se a natureza não me parecesse 
tão maciça
a essa hora do dia, 
poderia soar menos empolgada 
pelo fim do poema, 

essas frases tão frágeis 

poderia escrever para me sentir 
menos sentida, 
há um ouriço nos meus rins, 

parece também que uma caixa de alfinetes
está apontada para o lado esquerdo 
da cabeça
e a máquina 
as mãos, 
têm costurado as feridas do cérebro 

não sei o que tenho passado
pouco me importa agora
mas eu poderia sonhar 
eu poderia 
cair

à altura segura para descansar de uma vez 

poderia passar um infinito 
de carneiros
muito fofos
em cima do meu corpo

ainda a carne moída 
o almoço seria servido
e sobraria para o jantar 
o velório
será 
que meus olhos lembrariam
de fechar 
será que eu consigo
ainda dormir 
dê-me tempo  
sem a piedade de agora,  
assisto ao que vi nas cartas 
o que te reserva 

me dá um trago 
preciso me arrepender ainda, 
e não sei o que é 
ou nem preciso 
de mais nada ainda 

dá um tempo 
antes que me desfaça, 
até do disfarce entre nós 
aquele rosto plácido 
de quem nunca chorou 

domingo, 6 de setembro de 2020

parece finalmente 
que a minha hora chegou 
meus caros, Que hora é essa?  
verdadeiramente não vos posso dizer, 

pois não a sei, 
é uma hora imprecisa 
para mim ainda, 
no entanto, 
a sinto com a certeza 
nunca calculada 

portanto, meus caros
é a hora também da minha despedida, 
dessa fina certeza 
que me abate, 

e falo assim 
sem mais nem menos 
por temer não ter mais tempo 
para essas trivialidades, 

por hora, é um luxo 
poder dizer que escolho me despedir, 
mesmo sabendo 
que não sei 
O que será de mim agora? 

você secou a minha coragem 
de escrever uns versinhos 
despretenciosos, 

disse que eu era muito precipitada
e eu duvido que tenha visto 
o precipício 
com esses mesmos olhos meus, 

e me falou conselhos 
para me ver feliz,
mas você realmente acha 
que eu quero essa felicidade medíocre? 

não guardei mágoas, Cadillac 
o que eu tenho no centro 
da minha língua 
no meio desse calor e dessa falta de ar  

é o combustível que usei para te cremar 

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

a solidão

não sei se ela retorna 
quando enxerga 
os meus olhos mais espertos, 

se ouve o coração na hora incerta 
dos dias marcados 
se se repete quando vê o rastro  
da minha alegria pouca, 

mas frequentemente segura 
pela mão me arrasta, 
me faz ter culpa e me ama com ciúmes 

por raiva do meu desejo surdo 
a solidão cospe ao meu ouvido farpas
 
há uma distancia tão funda que me faz ceder e alcançá-la, 
 
o que sentir senão 
a previsão das amarguras

a boca na boca no pátio do mundo 
desocupo o nosso lugar

as crianças se foram 
para um local mais seguro, 

já passou da hora de você me dizer 
o que pretende depois de me dizer 
 
já viu uma lacraia regredir 
quando põe os pés no piso do banheiro? 

sequei até a sala dessa lama, 
o corpo pegajoso

é de extrema dureza 
essa relação injusta, 

a boca cheia de uns 
e o pátio vazio de outros 

longe da violência 
das suas palavras 

não me dizem nada,
e ainda pergunto

para onde fomos 
além de nos voltarmos contra nós?   

domingo, 30 de agosto de 2020

Torquato

estou cansada de morrer 
sinto muito  

o tempo está engomado 

as horas agora amadurecem de acordo
com a minha assincronia 

desamasso o tempo 

cuido ser lembrada 
pelos poucos 

como aquela engatinhando 

que vislumbrou a luz inteira 
decidindo cerrá-la 

dilato o útero da fênix 
reacendida 

sou o pó e a verdadeira cinza 

eu sou ainda a passagem insolusável 
chão mastigado 

estou cansadérrima, 

ainda é tempo 
a minha hora de viver está passado 

sábado, 29 de agosto de 2020

EU

minhas mentiras usam o ato da verdade para existir

escrevo, atuo, construo o meu papel 
torço as palavras contra o meu favor

e me revelo sem a nitidez 
das lentes, 
dos espelhos ao redor cravados 
nos rostos,

me reconheço desigual,
o mundo assim me reconhece,
como se já existisse uma igual a mim  
que não me pertencesse

mas que fosse mais apurada
do que o gesto do próprio existir 
(o meu) 

uso muitas vezes o eu,
ao me repetir busco encontrar 
a minha diferença, 
o meu momento preciso de indecifrabilidade 

são nesses encontros de fragilidade pura 
em que o reflexo se confunde,
quem eu sou 

o que arrasta a minha escrita

não mais minha
já não precisa  

sou todas essas cópias de uma só palavra 

noir

conduzida à fila do cinema 
escolho o mais nonsense 
arrisco ser o palpite
: te assistir antes do filme 

até irmos às profundezas da sala 
te guio à barraca dos doces 
mais sal na manteiga 
pacote extra grande 
te deixo na fila do banheiro 
com a mão no ingresso 

penso do espelho em não retornar 
tenho receios de te beijar no escuro
e regressar à belle époque 
fico aflita de confabular um roteiro 
na minha cabeça 
que faça mais sentido e 
que me faça sentir vontade
de acender as luzes 

assim apareço com as mãos úmidas 
- tremo pensar no contato com as suas 
evito movimentos descuidados 
assim deixo você ficar com a pipoca
aliada ao corpo 
me parece seguro 

e aperto os olhos nos números das cadeiras 
percebo a nossa distância 
em relação às 
outras 
vejo em câmera lenta 
o nosso ritmo 
ao mínimo gesto 
não nos permitindo cortes 

ou foi o filme que termina 
ou foi o início 
do meu desfecho 
ninguém entre nós se levanta 
só ouço você finalmente 
e só consigo
entre os créditos 
dizer que o melhor do filme 
é a parte em que a gente se torna 

os lugares da memória

você consegue descansar 
ao pensar me ter amor? 

eu não conseguiria
ser passífica 

depois de você 
ter nos trancado

embora 
pela porta 

à outro bar 
tenha seguido 

ainda não havia 
frequentado 

essa saída 
há sempre alguém esperando

mas eu te compreendo
só um pouco, 
só para dizer que compreendo 

embora 
antes que conferisse 
pelo buraco embaixo da porta  

eu voltaria 
embora 

seja muito tarde para achar 
outro lugar que esteja aberto 

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

cortes/

deixo o cigarro apagando- 
se 
te espero ter-
minar as conjecturas 
sobre 
os poemas 
fala-
dos demais 
de-
certo o teu olhar 
a-
traz algo 
da morte 
e do pequeno
prazer, 
de-
certo eu não sei 
por onde
ter-
minar 

esferográfica

deixo escapar os poemas 
as pontas dos dedos 
azuis
me encaram de lado
acho o céu 
e o seu olho
um só traço 

mas os poemas 
por mais que me escapem
ainda beijam 
os dedos 
os olhos revirados
sinto muito tudo
azul 

Absolvição

Em tom pagão Drummond 
Que resignado buscava além das pedras
A lapidação da própria pedra 
"Chegou um tempo em que não
Adianta morrer" 
Não é por mal que te digo
Sobre o lugar da angústia 
Em que estamos ancorados 
É o tempo em que morrer 
Não é mais preciso 
Nem mesmo nos arrepender 
O perdão não mais existe 
Pois não há pecado 
Não há mal algum na fala 
Mas não diga que não avisei 
chego à beirada, 
o esboço aceso 
e a fundura das águas 

em chamas 
os livros
foram eles 
que queimaram 
as minhas mãos 

te faço ardências, 
incendiada pelo aspecto
bebericado da manhã  

não falarei de mágoas 
dos pássaros pesados 
- petrificados estão
em movimento involuntário 

na gaiola do meu 
intestino fino
há uma constante hora 
em que o sono
não adormece 

está revirado, 
atravessado nas águas 
a boca de um vulcão 

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

domingo, 23 de agosto de 2020

emergências

vejo a vanguarda com seu guarda-roupa
de novas alegrias, o psiquê que ficou
lelé da cuca, o braço cheio de furos 
e os furos que a gente deu na vida 

há tanto que buscamos não voltar atrás
mas há quem se arrependa e siga 
há quem parou no meio-fio da avenida 
Atlântica nunca foi tão deserta 
e existem aqueles que além do horizonte
não fecham os olhos, se inclinam 

vejo mais do que as flores no seu sorriso
tem aquele pássaro descansando, 
a goma de mascar e a ferrujem 
ainda não te levei pela mão na despedida
foi pela entrada descoberta a saída 

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

desperta

volto a ver os seus olhos 
de intensa raridade

minhas pálpebras desérticas 
o mundo parece de uma secura

deserto igual ao que vejo 
a terra o imenso desterro 

nunca pedi que partisse 
mas abri os olhos 

e o peso dessa aridez 
me faz coceiras

me irritabiliza 
nunca pedi que me abrisse os olhos 

domingo, 16 de agosto de 2020

ternura

pego as fotos da minha infância 
dentro de um moisés, 
pelas mãos da minha mãe 
aprendi a navegar 
no tecido da ternura 

eu surgia como quem estreia
a própria vida 
vestida demasiado tecida, 
radiante, como quem nasceu 
de uma estrela 

e em mim foi crescendo também
a vontade de costurar 
o meu próprio afeto

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

mapa

você me mostra o peso 
das suas mãos leves 

o susto de querer as suas mãos
moldo 
minha superfície 

e não me contento 
com os mapas
aonde fomos é além 
aquele lugar que chamamos 
            de escudo

escolho as suas mãos 
            e me encolho
num lugar de pouso
na aresta de uma cidade 
ainda não delimitada 

terça-feira, 11 de agosto de 2020

quero compartilhar uma mensagem contigo

o que posso fazer 
para te ver mais de perto? 

lembrei daquele sonho da banca 
em que via os lados e só via túnel 

então retornava com uma maleta 
cheia de caminho na mão 

foi quando lembrei de acordar
e ainda te enviar o meu nome

mas à essa hora não retornamos 
os telefonemas e os cobradores 

nesses instantes eu quero voltar
a roncar em seu peito de gato
distanciado e rancoroso

é nessa vida que eu percorro 
a estranha sensação de não ir 
embora esteja muito distante 

embora partir seja apenas 
mais um gesto
de compartilhar a saudade 

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

das mortes morridas

das vezes em que morri 
foi a de saudade
a morte mais longa, 
dessa palavra criada 
para tornar mais gentil 
o jeito em que sentimos
o coração dentro de um tanque 
debaixo d'água
se debatendo 

ouveram mortes mais catastróficas
como quando morri de esperança
e assim como quando se espera 
neve no deserto 
eu fiquei no terminal
esperando ser atropelada 

e vocês esperam que eu diga 
que eu morri de amor 
mas é nessa morte 
em que me encontro 
é morrendo de amor 
que eu aprendi a viver 




quarta-feira, 5 de agosto de 2020

rampa

em algum lugar as palavras 
não se repetem  

o meu corpo inflama ao tempo 
desacostumado 

mover os braços, o ato egoísta 
aquele cujo não me permito 

apesar do cheiro de gás no almoço
não encontro vontade de me mexer 
nem para separar o arroz 

você poderia estar disposto a entregar 
as cartas ou andaria de skate em cima
do meu peitoral?

você comeria o pão do diabo
ou diria amor que não devo te chamar
de amor? 

em tempo de seca o meu coração
parece uma folha 
perto do fogo
em direção ao vento 

terça-feira, 4 de agosto de 2020

onde as ambulâncias não ligam as sirenes

você lembra das minhas tetas apontadas
ao horizonte, tristes 
dos três tigres
do cansaço das ambulâncias  
e a velocidade dos carros vermelhos 

você me disse que ninguém tinha 
mais livros do que eu 
e eu lembro que ninguém 
tem tanta tristeza 
apontando à essa luz e hora 

enfeitados

lembrar das noites iluminadas
dormir sob o seu nome sonífero
sonambular pela noite enfeitada  
ainda não esculpimos as palavras 
que residem em nossas pálpebras 

mas vou me distanciando das estantes 
ainda guardo o relógio no bolso
e a rosa da folha de goiabeira 
você perambulando sob o teto
ainda teríamos de secar as roupas

os nossos rostos de espuma
e os pulmões encardidos 
é muito tarde para dizer que não seríamos
os velhos pirragos dos automóveis 
ainda é por entre os dedos que fizemos
o que os laços fazem aos cabelos 

domingo, 2 de agosto de 2020

banho de chuveiro

me distraio com as chamas casualizadas 
pelo meu insubordinado coração
faz tempo que o frio não me faz tristeza 
eu me sento na beirola da cama 
e me delicio com a delicadeza das cores
das capas dos livros que me encaram 
eu decido tomar um banho 
e me irrito com frieza do chuveiro
mas eu não me sinto triste
pelo contrário me lembro que ele 
nos dias frios não toma banho
e não ama também 
mas independente da limpeza ou do amor 
eu me distraio com o meu coração insubordinado 

sábado, 1 de agosto de 2020

kafka

temo pisar em você
se movo os tornozelos
já estou no meio da estrada 
nada me distancia dos desequilíbrios
mas eu vejo você tão de perto
corroendo 
onde você se encontra?  
se eu soubesse 
seria mais simples desviar
ou não simplesmente acabar com você

temo te machucar 
mas se levanto 
esqueço dos meus sonhos  
e antes de abrir os olhos 
a sua imagem se apaga junto
me dando bom dia com as patas 
você se esconde quando vê a luz 
você não quer sair 
e o meu quarto já se tornou pequeno

quarta-feira, 29 de julho de 2020

perdido

se eu te pego 
pago pra ver 

se eu te vejo 
pego você 

se tu me vê 
você me paga 

se é de graça 
eu cobro o dobro

se for a graça 
eu vejo toda 

mas só se tu quiser 
se você querer 

eu também 
se eu sou só 

o querer bem 
é por você 

meu bem querer 
a rima eu faço 

quase sem querer 
querendo é pra te ver 
entrar na minha 

então eu me perco 
os teus cabelos 
perdidos 
em meu travesseiro 

eu atravesso o verso inteiro
só pra te ver meu bem é só você 
só pra te ter só pra você me querer 

Elliott Smith

ouço mais uma canção que vai falar de amor
também da fama, de acordar com duas 
facadas no peito, sobre as drogas
inclusive sobre a vida

já faz tempo que não sumo
mas é por dentro

tem vezes que eu preferiria ser aquele broto
dentro de um capim-limão
fresca e adubada, 
o chão nunca me pareceu tão macio 

deve ser por isso que quando Bartleby 
disse que preferiria não
o homem que nunca olhou o muro
ou por fora da janela se viu abismado 

sejamos o que sois

quando anoitece não preciso ser mais nada 
nem mesmo agradar a ti 
não preciso de escadas 
ou parapeitos, 
nem mesmo aquele sorriso
por debaixo da máscara 
que nos dias mais sórdidos desejo 
não precisamos ir muito longe 
apenas deite um pouco
a viagem tem sido longa 
os dias são cumpridos 
mas as noites são nossas
não precisamos ser mais nada 
a partir dessa noite 
amanhã estaremos no sono das manhãs 
não precisamos de mais nada 
além do que somos 

segunda-feira, 27 de julho de 2020

existe algo no poema que a gente deixou
de dizer, 
há no amor algo que a gente não sentiu
e que esquecemos de contar 

ainda restou mais do que 
esperávamos 
mais ainda 
do que o limite 
entre o que imaginávamos 
e nós 

o resquício da palavra ainda fresca

as viagens de laputa

vivo apoteóticos sobre o absurdo
por me entreter com os pavilhões diminutos, 
as ilhas remotas do grotesco
onde eu debato com as mãos flechadas
o roteiro da tipografia dos entretantos 

foi na meninice que eu saltei da razão, 
por entre os meus fantoches quis a malha
despir-me dos amuletos sólidos, 
a minha solidão pequena era bastarda  
a minha envergadura me fez mais franca 

o que faltou para o grande truque? 
melhor seria questionar os seguros, 
quanto a mim permaneci no abarrotado 
das bocas infelizes, queira me esquecer 
antes do astro aportar nesse covil

nessas horas permaneço ausente
mas ainda é muito cedo para a juventude 
eis que em alguma face, ainda que partida 
haverá o brilho descontado no silêncio
renascido do obsoleto gesto dessalgado 

Jonathan em sua biografia está morto e louco
que loucura é se banhar o lugar dos deuses 
nessa enfadonha garrafa de gin do portal 
eu ainda descobriria a região dos que amam
mas ainda é muito tarde para a velhice 






sábado, 25 de julho de 2020

Julho

você é como aquele palhaço preso
na parede solta que diz quem me fará rir? 

busquei em seus braços os picos
as aves em seus braços
o pouso da minha cabeça enxaquecada

e de tanto que o platinado do seu topete 
me fez abrir os olhos
de tanto refletir me dói te ver 

mas me sinto atraída pelas suas penas
bordado de pássaros perdidos 
ainda cavo o buraco pelo qual entraria 
(de cabeça) 

você é triste como a coca sem gás 
que se atirou pela janela 
no final de julho 

quinta-feira, 23 de julho de 2020

rudimentar

tenha calma você não será esquecido, 
por mais esquisito que pareça
te escrever depois de tantas idas 

é permanente te amar nesse estado
ilícita, dormente, de versos moles 
sem a pretenção de reter seu retorno, 
mas ainda prezo que volte

não somente ao te investir em versos
mas no terremoto do toque do eco
quando passo as mãos em seus sentidos

parte do dom de apontar o inferno 
dizer que o frio não existe, 
que é tudo coisa dos olhos

os mesmos olhares de adjetivos 
indefinidos que você se refere na gama 
indiscreta dos poemas arquivados, 
dóceis meninos de mãos inquietas, 
as crias que você deixou pelos bairros
hoje navegam no rio da infância

a cidade nunca foi tão desproporcional 
desde quando algum de nós partiu
algo em mim 
sempre há algo 
                         indo  
me pedindo para ir
entretanto há algo em ti
                         vamos 
eu continuo sem saber quem voltaria

a realidade é que se estende entre o nós 
além de estradas a distância imaginada 
entre o cão e o gato

ou a figura de um romance que só
poderia dar certo se comendo
ou co-existindo 

tem dessas coisas paranóicas 
os românticos contemporâneos 
que se espelham nos livros,
e eu sei que você caminha sob os seus
por dentro da poeira, do seu relógio
sempre atrasado crente que haverá
tempo pra o amor, mas não esse 

o nosso você reservou apenas 
para dizer que amou daquela vez 
como se fosse a última 

terça-feira, 21 de julho de 2020

meu pequeno Cadillac enferrujado
o seu retorno em Saturno virá mais cedo
quando o mundo disser que nós da terra
estamos perdoados

eu disse que não viria antes de amargar
mas há quem veja o filme pelas lentes da câmera
há quem mova os pés dentro de uma camisa

e você, meu pequeno Cadillac enferrujado
fez tanto por si mesmo
e ao mesmo tempo nada
ao mesmo tempo em que você se afoga
a superfície se pretende mais rasa

você, e eu e o mundo
numa dança acasalada
em que os planetas diriam
ser o perfeito trânsito vulgar
a sua delicadeza devastadora me come pelos lados
eu me entendo no instante em que te revido com versos
você acha graça do meu tamanho no mundo
e eu vejo a sua boca fazer gestos obscenos 
como quem reza o pecado, como quem rói o prato
e eu ainda não comecei a te amar pela terceira vez 
mas ainda há quem diga que o amor é uma vontade dissimulada
se for por nós eu estaria além do verso te revirando a cama 
se for por mim eu estaria te amando de novo  

segunda-feira, 20 de julho de 2020

se eu reviro os olhos 
quando digo 
te amo
é porque não é 
tão simples
te amar
de olhos parados
de corpo fechado
te amar 
simplesmente 
sem me revirar 

à F. Passoni - que não leia este e outros meus poemas

eu te amei no tempo das descobertas, 
eu te amava sem rosto, sem nos tocarmos
mas sentia de teus olhos o lançar
chamas debaixo das minhas pernas; 

foi a era da treva quando eu te amei 
esse amor do qual falo é uma espécie
de coturno e saia justa; 

e eu que sempre prendia o choro 
foi depois de ti - esqueci de não chorar 
e que eu decidi a desconfiar 
do que dizia o olhar
os seus, os olhos, omitiam as intenções 
sempre tão secos; 

eu te amava embrutecida pela pouca idade
aprendendo a amar errado, pois foi por ti
que aprendi a mentir meus erros 
eu aprendi a negar meus desenganos
eu até aprendi que sofrer era parte;

eu aprendi de uma vez a te amar e outras 
coisas mais, mas chega de mágoa - 
eu resolvi te escrever por lembrança
por reviver esse amar verde 
foi a era do trevo também; 

esse amar que surgia vermelhinho 
em tua boca, de sotaque interior 
das minhas vontades mais escondidas
foi ao te amar que descobri amar 
o corpo oculto das mulheres; 

foi ao te amar que descobri cores novas 
uma delas se chama Passoni 

espelhada

olho o espelho de perfil no quarto 
estou quebrada, 
não acredito na sorte 
nunca a tive, 
essas dores as tenho sentido
nunca foram novas, mas são 
a única novidade da minha vida, 
ainda tenho vontade de sair, 
mas não teria coragem, 
não tenho cara para vender por aí 
ou no seu quartinho de hotel,
não tenho grana, 
não tenho disposição para gemer, 
mal tenho dentes depois do siso 
acende o cigarro, 
para comer mal tenho estômago, 
mas tenho dores, 
mas não vou distribuí-las, 
se quiser deite ao meu lado na rede 
eu posso te contar sobre o início
você poderia ficar 
você pode se entreter no caminho
você poderia ter lido 
ou para mim ou para se distrair 
antes que eu me esqueça 
depois da dor estancar 
antes que eu veja 
o rosto no espelho estilhaçado 

sábado, 18 de julho de 2020

me agarre com as suas unhas 
não como quem procura uma pérola
no centro dos meus famigerados 
corais pontudos, tesos 
ou como quem com as mãos em concha 
prende numa toca o rato de olhos vermelhos

me agarre com as suas unhas
sim como quem anula as leis da matéria
e simplifica a dimensão de um átomo
em labareda rondando o espaço
ou como quem com fome beija o laço
e se permite a singeleza de um artesão 

me ame e agarre assim feito quem
uva por uva prepara um cálice 
e fermenta o pão
e passa o café na calcinha 
e alivia a dor do tendão
ame como quem espera a hora da minha partida 
como quem agarra o instante da minha chegada 

quinta-feira, 16 de julho de 2020

outra vida

queria ser uma grande capivara gigante
quarando na tarde
assim como uma Deusa 
na grama capinada pelos grilos, 
pelos demais em todas as frestas, 
toda festa sob a cortina dos dias amenos, 
todos os dias afiando os meus cotovelos, 
as dores primárias, meu senso de respeito
pelos carrapatos

ah se eu tivesse um cigarro para dar 
a esse pombo e ainda ter mais um para
fumar, mas o que me restou foi 
essa paisagem, a cabeça e a vontade 
de reencarnar no corpo de um escorpião 

água fria

o coração da noite tocou o meu rosto 

revi os vídeos, você me parece  

descontraído, mais caloroso  

do que quando me tocou nos dias  

em que dizia de paixão como quem 

toma uma dose de jambu  

tomo a ducha de chuveiro pelando  

você quase derreteu no meu banheiro 

me dizia do banho gelado   

dos baldes debaixo da cadeira 

você tinha medo de que eu sujasse  

a sua cama, mas você viu o que fez comigo?