domingo, 27 de agosto de 2023

Carlos

a palavra 
nos leva à solidão 

a solidão nos leva à palavra 

nós
que nos calamos

– Carlos 
não se mate,
calos nas mãos –

diante de nós
esta escrita decepada. 

verossimilhança

disse-me “você me soa mais sóbria”
e que lhe parecia diferente 
a minha imagem. 

eu não lhe perguntei em troca 
que diferença era aquela 
que eu era comparada. 

mas os seus olhos me soavam 
embebidos pela semelhança. 

ao pó

teu nome é desejo, Eros 
me engasga com a palavra final

alucinada, 
o teu som de espáduas 
rangendo o cal 

nenhum semblante 
a não ser o do ciúme 

devolva-me a minha pátria. 

sábado, 26 de agosto de 2023

este jardim

vendia flores e poemas
aos dezessete flores 

versos em vasos 
orquídeas sanguíneas 
nos braços, rosas e espinho 

desabrochando 
neste ofício: florista

naqueles dias de estio 
de uma nova estação  

hoje ainda vendo poemas e 
e este jardim

na primavera do meu coração. 

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

24/AGO/23 

Naquela semana, cheguei mais cedo ao museu todos os dias. Das nove às sete. Estou obcecada pelos papéis, as mãos enluvadas por finos cortes finos, sinto o cheiro da minha insônia avermelhada. Páginas e mais páginas. Rosângela me chamou para conversar. Na noite anterior houve o lançamento do Rodrigo de Souza Leão, eu disse entre risos, estes amarelados como os papéis e os dentes das feras, que eu queria entrar para o museu, mas que antes deveria estar morta. Me viu sondando uma nova pasta do Lúcio Cardoso, revirou os olhos de atenção. Você precisa de alguém para cuidar de você também. Não vá enlouquecer. Você deveria tomar um sol aos domingos. Ver o mar, mas não se afogue até os olhos. Fico sem palavras nos momentos de intensa seriedade. Não consigo mais esconder o meu labirinto, finco os rastros com afinco. O arquivo me tomou o sol aos domingos. 

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

e se acordei?

adormeci com o cenho da tua palavra 
na feição da minha memória

sonhei o sonho dos meigos 
e daqueles sem necessidade 

e se acordei?
ainda me indago 
você poderia me devolver a realidade? 

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Sabes/Sabés - Idea Vilarino

Sabés

Sabés
dijiste
nunca
nunca fui tan feliz como esta noche.
Nunca. Y me lo dijiste
en el mismo momento
en que yo decidía no decirte
sabés
seguramente me engaño
pero creo
pero esta me parece
la noche más hermosa de mi vida.
.

Sabes 

Sabes
disseste
nunca 
nunca fui tão feliz como esta noite. 
Nunca. E me disseste 
no mesmo momento
em que eu decidia não dizer a ti 
sabes 
seguramente me engano 
mas creio
mas esta me parece
a noite mais bonita de minha vida. 
.

Sabés - Idea Vilariño (1920-2009)
Trad. Gyzelle Góes
.

VILARIÑO, Idea. Poesía Completa. Montevideo: Cal y Canto, 2012.

sábado, 19 de agosto de 2023

ao vampiro SUL

com a unha nas carnes
a carne nas unhas
pensávamos é preciso 
cavar mais fundo o poço
este poço fundo
sem fundo 

com o sangue na boca
e nos olhos o sangue 
sangue no sangue 
boca e olhos
até você me 
perguntar o que é paixão
com todos os signos 

a palavra na língua 
o filete escorrendo 
a verdade é que 
os seus olhos
escondem toda a sede 

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

arrítmica

no cio de te escrever um poema 
penso no pequeno som
e o sim que faz o meu
coração

quando você se projeta 
na luz da meia luz 
intento arrítmica 
uma canção

versos no verso de um cordel
dez exercícios a matéria 
da tua face 
no refrão 

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

teu nome

coloração de escamas de águias 
escatologia, rasura de uma palavra. 

na penumbra o copo de água 

verde turquesa, feixe da bruteza
aprisionada a uma pedra na orelha. 

dos olhos dos amantes a delicadeza. 

espécime mais rara que a minha boca pousou. 

terça-feira, 8 de agosto de 2023

convite

poderia me alongar 
sob o bordado 
do teu passado 

o que dizer a ti 
ou de que modo? 

rente a margem 
o mar inundado 

vi os olhos 
das folhas das árvores 
das esquinas secas 
por teu nome árido 

a tua ausência 
é uma noite curvada

velas intactas 
ou balões perfurados? 

uma festa surpresa 
que te fiz sem a intenção 
mínima de convidá-lo 

sábado, 5 de agosto de 2023

diário

o meu amor ouve
o teu rasto invisível
o louco silêncio previsível 

maciez impávida 
das paredes acústicas, incólumes
(me parece um útero este lugar) 

eu diria que te amo diante dos teus olhos 
é que a minha sombra este poema oculta 

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

prancha de surf

certa vez um livreiro
se aproximou de mim
na esquina da estante 
de poemas 

e ele falou assim pra mim
como se fosse um segredo
com a voz de rasgar
alças de vestidos 
com os dentes

se você quiser viver com um pouco 
de dignidade esqueça 
os poemas 
vá surfar 

e desde aquele dia eu sonho
com as suas costas 

aquário

poderíamos ter a ilusão vivenciado
de que o amor nos faria letrados 

poemas dentro de estrelas

no fundo de quartos, cubículos
dentro de paredes descalças 

poderíamos ter descançado 
após um dia de trabalho 

você escrevendo
um romance e eu 
buscando vivê-lo 

enquanto esquento a água 
o paracetamol e a noz-moscada 

poderíamos ter ido ver a feira
de mãos dadas

decorado o nome desta rua 
e desta solidão que se projeta
como a sombra de uma árvore 

poderíamos chamar de destino 
mas você 
e eu... 

não lembramos sequer 
o nome dos nossos peixes 
dentro do aquário

terça-feira, 1 de agosto de 2023

de duas, uma

ou se morre de amar 

ou você 
pode esperar 
em um banco carcomido 
na beira de uma calçada 

aquilo o que a vida te prometeu