quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

alguma forma nenhuma

diga-me, alguém 
já te escreveu um poema,

um poema de amor?
o que você está pensando? 

as vezes me pego
sem nada. 

nem palavras,
isso é gravíssimo.

mas por alguns instantes

não recordo 
do poema, o amor

uma forma de te inscrever 
na minha vida. 

Zeus e o sol

dias nublados em dezembro
acordo com o som metálico 
da chamada de voz

você me dizendo
linda, me desculpe mas
eu não te contei toda a verdade

sons de cigarras suicidas
amanhã finalmente
fará o sol que Zeus me prometeu 

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Wilston

antes de sair de casa para ir trabalhar 
minha mãe me pede que compre 
cinco carteiras de cigarros 
Wilston prata 
dou cinquenta pratas e me vou  
esqueço a outra metade do troco 
o cara da banca me pergunta
está sobrando dinheiro?
o rapaz da bicicleta com carga 
estaciona em cima de mim
eu acho que a qualquer hora
eu simplesmente 
poderia ser atropelada 
me passa isso pela cabeça 
mas eu volto às escadas
deixo os cigarros em casa 
e pego a minha bolsa e o meu batom 
desço a ladeira e vejo o 410
ir embora na marcha 
me posiciono em frente ao ponto
de ônibus sem guarda-sol 
o sol sem sombra
eu sem dúvidas de que 
fazia um sol da sombra fugir 
mas ao meu lado ele para 
e eu de súbito me desgarro 
dos meus fones com fios 
ele me pergunta de novo 
se estou esperando ainda 
o metrô na superfície
mas é nítido que ainda estou
a esperar o que seria? 
as vezes parada fico a pensar
paro e me pergunto 
o que estou esperando? 

sábado, 16 de dezembro de 2023

no centro o peso do coração

como já dizia helder o poeta,
com todo o peso do coração no centro,
me comporto feito uma pantera 
azul tunísia a descascar as cascas 
das feridas no calcanhar 

os poemas nunca preencheram 
as cadeiras vips 
mas, há algo de tão vazio e ZIP 
na palavra e no privilégio da língua 

 – se tivéssemos cobertos de 
pêssegos em calda no gosto da língua
a lamber veludos azuis tunísia, 
estaríamos a vender poemas – 

assim, deslizo os meus tornozelos
dos grandes centros do tumultuo
da geração que jura ser a 1ª 

há um delicado humor nessa geração 
daqueles poetas que estampam 
na face rígida uma ruga de tristeza,
triste seria se não fossemos 
“o peso do coração no centro” 

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

a terra a nos fritar em seu fim

digo para mim: tudo está 
acabado entre nós 
amor

que seja terno 
enquanto tudo isso 
não nos sature 

você sabe, com um sol
desses de ovos e miolos fritar 
no asfalto você arrasta 
o meu desejo pelas mãos 

mas digo para mim
tudo acabou de acabar
antes de nós
amor 

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

de lince

e os teus olhos de lince 
que me arranham
arreganham,

e os teus olhos que me façanham,
estranham, estranho

os teus olhos
estranhos 
teus olhos 

domingo, 10 de dezembro de 2023

como se eu criasse um novo lugar para viver

estou em queda por você

embora sejamos detalhes da língua

quando caio, crio planetas

poderíamos morar lá (neles)

sem alugar espaços: dois penetras 

penetrando o espaço o espaço

entre nós seria uma metáfora

a meta do espaço e nós descalços

quando te vejo eu sinto 

como se... 


os planetas estivessem alinhados

costurados, rasganhos, desgrenhados,

surrados, suturados, sarrados, usurpados,

surrupiados, chupados, chipados, chapados,

sonegados, soterrados, soterrados, 

surtados, salpicados, sombreados,

som, som, som som


o que você faz em mim me faz sentir

como se... 

sábado, 9 de dezembro de 2023

para secar dos teus olhos as lágrimas

às vezes penso que o amor
é uma forma de revelar o meu escudo

lançaram as minhas asas 
do quarto andar dentro de um anúncio 
de papel cartão 

– a venda 
no teu rosto 
possui o tom de uma pena rosa – 

sonho em entrar no teu guarda-roupas
guardar a minha lucidez 

para a vez em que tivermos 
de fazer a escolha 
entre atirar

ou simplesmente 
dar as mãos 

na hora do salto, do assalto 

meu sonho é estirá-las

na hora do adeus

pior seria se nunca tivéssemos
aprendido a espreitar a solidão,

pior teria sido se nunca tivéssemos 
compreendido que o amor é uma forma 
delicada de desenhar a saudade 

pior se nunca tivéssemos
provado o sabor da despedida, 
não saberíamos que na hora do adeus

uma única coisa nos resta: 
– não estamos finalmente sozinhos 

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Sobre o planeta não estar maduro para a alegria

De acordo com o poeta Murilo Mendes,
O planeta não está maduro
Para a alegria. 

Eu acredito que o planeta 
Não tem nada haver com isso,
O planeta está verde para a alegria! 

Quem não está maduro somos nós, 
Nós estamos passados. 

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

um castelo no mar

desde que pousei ao mar 
a minha face se embaralha 
com o novelo
das ondas

confundo o meu reflexo
com o perplexo
gozo de Vênus

uma alga-vida 
se consola nos meus ombros
movediços, viscosa 

onde será que eu naufraguei
por culpa da fadiga ou revelia 
busco antes da terra
a boca: a asfixia 

das tormentas ao mel da poesia 
construo o meu castelo – 
atraco nas costelas de Poseidon 

4.12.23

sonho com você há dias ininterruptos, sua última aparição foi agorinha, na minha entrevista de trabalho. o meu possível futuro chefe, um editor muito vistoso, falava alto para você ouvir, estava tudo bem até você aparecer. depois da cena de exibicionismo do meu possível ex chefe, eu fui assistir a uma palestra inútil ao seu lado, finjo que quase sento no seu colo, você diz “eu adoraria que você se atrevesse”. eu adoraria te atravessar. saio para fumar, em todos os sonhos eu simulo um forma de me afastar de você. não consigo me desgrudar dos meus sonhos e você me agarra de uma forma que faz como se eu me sentisse viva. estou me ferindo nas horas vagas – eu deveria estar dormindo – eu deveria estar descansando de você. mas você diz que vamos sair e que eu não vou beber. você quer me controlar, mas você não sabe como. você me descontrola. nós saímos e eu te perco no caminho. corro, corro feito uma lebre a fim de salvar a própria pele, até você. grito o seu nome, F. te aviso de longe, você sabia que eu voltaria ao meu fim. você não sorri, mas o modo como caminha até mim te entrega. você sabia que eu viria. perco o meu chinelo, perco o que eu queria te dizer. você, a rua imunda, o centro da cidade púrpura, olho para o lado e já não é mais você, mas as costas de um desconhecido. é apenas o meu modo de pedir que você se aproxime. 

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

às 03:54 de segunda-feira

o caminhão em mim 
bateu na traseira de um ônibus. 

a rua está dormente, 
não me espanto – 

a falta de sono
não assassinou os sonhos. 

pelo contrário, 
ainda tenho em mim 
um acidente que fez a cidade dormir. 

terça-feira, 21 de novembro de 2023

mulheres e caranguejos

as mãos são negativas, Duras
mitos das caixas Russas 
ossos do crânio do gato filhote 
como llevar El mundo en Las Costas 
a obra é o rascunho 
papéis diversos lançados
no calçadão da Lapa 
um aviso “ele está voltando” 
ela, ao chão, nos envolve
com retalhos recolhidos da Ucrânia 
homens latidos uma mão desavisada
oferece uma lasca 
do coração aos pombos 
cartas de recortes da Briggite 
é assim que você deveria ser 
no bilhetinho dobrado
um aviso: queime antes de ler 

sábado, 18 de novembro de 2023

memória de um corpo

revisitar a memória de um corpo
como se nele tivesse morado 

cobiçar do amor o furto 
de ser amado: que nele 
me fizesse amante, 
amiga e a espiã do desejo 

desse lugar onde habitar 
seja o princípio, o despejo
– e o anonimato 

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

morte-vida

me empenhei tanto
mas é certo, nada concluí

exceto a morte,
essa me pegou pelo cangote
e me fez orar pela vida 

minhas preces 
são incisões instruídas,

nada além 
do que tirar da barriga 
a vontade de te fazer nascer 

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

epitáfio

quisera morrer 
nos teus braços
dormente de vida dentro

de uma noite longínqua 
espessa de opacidade 
e rigidez

vibrar pelo peso íntegro 
da tua mandíbula 
tocando flauta 
dos meus ossos

quisera morrer 
nos teus braços
de uma só morte ímpia 

e renascer límpida 
vestida de camélias 
e cinzas 

suspeitar da leveza profana 
da tua língua
recitando versos 
sobre os meus vermes 

quisera morrer 
nos teus braços 
e amansar as vísceras

certa de que a vida 
deveria ser por fim 
– um epitáfio – 

sábado, 28 de outubro de 2023

quinze

estou esperando, meu amor
um convite para estrear no seu poema

que você –
em movimento fatal –
me diga que desistiu de morrer 

ou que fundou uma nova forma
que tendesse a nos dizer 

que está tudo como dois e dois: 
são quinze 

estou esperando, meu amor
um convite para estrear na sua vida 

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Vestida de gala

Aguardo no parapeito
Dos girassóis o rosto
Da morte ou a vida

Segunda-feira
Encontro-a desfalecida
Alguns rostos-vultos avulsos
Empapam a minha vista

Enfio-me no retrovisor
Visualizo um rato
Ou a performance de um roedor
A atravessar o caule de uma figueira

Me trancafio de prata na roleta
Finjo vestida de gala o meu funeral

Que apesar de singela me cheira
Morta-natureza os meus dedos
Estão exaustos

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Pulmão plácido

Delírio. Uma inofensiva palavra
a palpitar no pulmão plácido de um rio
às margens, memória de um imaginário 
suspenso – corpo enforcado. 

O seu rosto. Uma ofensa às tardes
entre as quais o sol se esconde, você 
que surge feito uma única bicicleta
em uma ciclovia deserta, inclinado. 

Você. Que se esquiva das palavras,
das imagens, desprevenidas. 
Como se fosse breve o tempo dentro 
de uma rima, porventura, desinibida.  

ficção-morte

a morte de saudade foi a morte 
mais duradoura, o coração dentro 
de um tanque afogado 
debaixo d'água.

das mortes catastróficas –
morri de esperança, sabe 
quando se espera neve no deserto?

e dormi em pleno terminal
à espera do passeio do trem 
sob meu corpo na hora de pico. 

vocês aguardam que eu confesse 
que eu morri de amor... 

é nessa morte 
que me sinto viva, foi morrendo 
de amor que eu finalmente nasci.

terça-feira, 17 de outubro de 2023

uma chama disse sim a outra chamma

não é a chamma
que me chama
sou eu que a chamo

negativo

a caixa me olha

eu olho
para a caixa. 

a caixa tem um olho
literalmente,

ou seria uma chamma
dentro de um fósforo? 

esbarrei em caixas, caixas toda a vida
e em toda ficção

mas não é ficção e não é vida

pelo contrário,
dentro dela não o mistério

a revelação
(a dobra da dobra) 

invenções

produzir além de produzir
não produz

se o produto
é a produção

o meu projeto 
é a invenção 

dobra

sempre estive muito presa à dobra 
esta obra

não coincide 
com a minha dobra 

uma caixa disse sim a outra

o corpo é uma caixa? 

não,
mas habitamos as caixas 

útero, casa, pele, documentos
para onde vamos? 

quando começou o mundo
uma caixa disse sim a outra 

encaixe

ter de produzir
um corpo
uma caixa
este gesto dentro de um museu

ter de produzir
uma memória 
uma cinza 
este lugar que nem você e nem eu 

nos encaixamos 

o que fizemos das nossas cinzas

produzir caixas
dentro de caixas

caixas
de fósforos
de arquivos

teu corpo 
em chamas

o corpo
me chama

me chamma
em teu corpo

o meu corpo 
o que fazer com as cinzas? 

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

gota de pólen

I

há tanto a ser dito
meu amor 

que a poesia 
não é um poema

que o meu amor por você
não é um poema

mas um delicado 
acidente 

entre dois versos

II

ou duas flores 
em um mesmo quintal 
em busca de um rastro 
de sol por inteiro 

antes de florirmos 
e ferirmos a angústia do tempo 
paralisado em nossos caules

tanto a dizer eu te amo

mesmo sem trocarmos
sequer uma gota de pólen 

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

cruz

a tua palavra cruzada 
ainda fraca festa fresca

você me vem peluda pomposa
bondosa a tua forma de abrir

os braços
a tua crista

como quem vem determinar 
qual palavra inscreveria o meu corpo 

crucificado ao teu 

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

outubro

chamar de nosso
tudo aquilo 
o que perdemos

a começar por essa noite

você se aproxima
como quem se curva 
a uma outra voz 
do outro lado do quadro 

e eu me confundindo 
com os teus
passos 

o que você quer me dizer? 

chamar de nosso
este encontro
impossível 


domingo, 1 de outubro de 2023

molduras

com merlot na taça

na memória teu estrago 

você me questiona se quer 

que eu te leve à casa


eu digo, meu amor

eu estou no controle


várias molduras na sala

mas por que a tua foto

não está comigo 

era tudo o que eu queria esta noite


tudo conspira a favor de nós

tudo conspira contra nós

e eu inspiro pelo teu encaixe 

dentro da noite você se despede 


você me pergunta 

se eu já estou pronta

e eu sorrio e acho que você já sabe 

a resposta


você sabe e eu sei que eu sei 

mas as vezes eu até duvido

mas você sabe

que até você duvida


mas você sabe e eu sei que eu sei 


sem merlot dentro da taça

e em breve você voltará para casa


mas você sabe e eu sei 

as nossas fotos 

não se encaixariam 

nas molduras 

terça-feira, 26 de setembro de 2023

26-09-23

Hoje, chegamos do arquivo, era umas sete horas da noite em ponto, depois de ler Gertrude Stein no ônibus, eu me deparei com um dos meus pesadelos: um carteiro a me encarar. Tenho pesadelos com carteiros. O que é uma ironia macabra, pois eu sou apaixonada por eles. É o amor e o ódio, fuga e encontro. Medo e desejo. Eros, volto a ti. Você me compreende de uma forma torta, eu te entorto de um jeito incompreensível. Mas serena. Os olhos do carteiro, não minto, pareciam duas pitangas. Da cor das pitangas caídas no chão de terra. E eu, resignada, pois o semáforo em frente ao meu prédio é meu inimigo número 1. Descubro a eternidade, sim, menor do que eu pensava. Não imagino coisas terríveis, mas são infalíveis. Nós atravessamos, não olho para trás, não sou louca. Entro no quarto, tiro o vestido sem olhar para trás. Olho o meu móvel, me cai a ficha, mais uma vez eu esqueci de pagar o cartão de crédito. 

coca-cola

que nome estranho eu devia procurar
a etimologia desse nome
as tomadas para carregar os fones 
mas estou com a sua voz nos ouvidos
você me esfrega a sua voz nos ouvidos
ouço o meu nome a roçar
mas você me coça de um jeito
você me coca energética na tomada 
de uma forma que não é inventiva 
e não é leve nem aprumada 
mas tem uma forma 
de coca-cola no expediente 
e eu não gosto de coca-cola mas imagino 
mas eu estou sem você no trabalho
de te escrever um poema ou uma carta
ou qualquer coisa que você não leia
porque acho que se você vem 
quando te escuto ou quando sua voz 
me coça no meio das pernas
ou no túnel entre as costas 
você me deixa um pouco envergada 
quando penso em te escrever 
não vejo forma certa de dizer que talvez
eu esteja definhando ou nascendo
ou uma forma estranha e espetacular
de demonstrar aquilo, você sente 
aquilo o que não se pode disfarçar
ou cobrir com as calças ou vestir 
com o seu caçula mais novo o ALL Star 
mas eu sinto vontade de rimar as vezes
ir para algum lugar um deserto?
será possível pedir um gole de coca 
lá mas se você estivesse fico pensando
aqui comigo agora eu pediria um golfinho
opa um golinho foi culpa do corretor
da sua boca antes da sua voz me dar 
água na boca uma vontade de coçar
você dentro de mim assim eu me livraria 
das livrarias você aqui dentro te leio

sábado, 23 de setembro de 2023

23-09-23 

Quero começar um romance. A história de uma poeta e um carteiro. Cheio de lacunas. Uma história cortada/friccionada por cartas nunca entregues. As cartas extraviadas. Não usarei o seu nome, H. Um romance entre uma paixão e o delírio das cartas. Um romance impossível, ou não tão distante assim quanto parece. Depois do apagão de hoje, acordei para essa ideia adormecida. 
23-09-23

Depois de hoje, sinto que não tenho mais desejo de dormir. Não se não for para sonhar com o sonho da noite passada. Me parece um disperdício absurdo não viver o meu sono. 

F. vem até mim, me questiona o porquê dos meus delírios. Começo a tecer conjecturas sobre o meu projeto de doutorado, de repente, só existíamos no cosmo, atravessados pelos nossos corpos interessados/interligados. Ele me fere com os olhos de imaginação, eu não interrompo a minha fala por puro receio de acordá-lo com o meu silêncio. Sinto o seu braço me entrelaçar como uma serpente ama o calor da sua presa, e vejo a sua mão pairar sob o meu peito. Não há sexo entre nós, apenas a chama infinita do inferno. Suponho que ele queira ouvir o meu coração, não com o objetivo de se certificar de que eu estivesse viva dentro do meu sonho, mas para identificar a veracidade do meu amor. Se o amo com o além-corpo. Os batimentos do meu coração me acordam. Agora não faz sentido dormir se não for para morrer infeliz e radiante de amor dentro do meu próprio sono. 


segunda-feira, 18 de setembro de 2023

um milagre

você que me aparece
com os olhos de costurar solidões

venha me dizer 
se você está pronto, realmente 
para morrer sem fama

pois eu estou, meu amor
apenas com uma caneta na mão 

e isso eu te garanto, é um milagre

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Moebius

me acompanhe até a linha 
do horizonte

onde possamos 
cortar o trópico 
o utópico e o ócio 

o poema poderia findar 
dessa forma decepando 
as fitas de Moebius
os textos e as rasuras

mas você fez uma costura 
bem no centro
do meu coração

me acompanhe até a saída
mais próxima

acho que perdi 
o rumo ao sol
o sal da terra 
a direção 

domingo, 10 de setembro de 2023

a busca pelo retrato

se eu pudesse ter um mapa 
do meu coração, a minha presença 
nas ilhas não seria rastreada,

mas se eu me buscasse distante
das encostas, localizaria as minhas 
mãos enfeitadas de areia. 

destruo um castelo antes das ondas 
do Mediterrâneo revelarem a sua mágoa, 

construo uma ruína antes das paisagens
perdidas à minha passagem alheia. 

terça-feira, 5 de setembro de 2023

geometria do sol

posso te oferecer a geometria do sol
que há no vínculo das minhas mãos,
a sombra partilhada da solidão
ou o silêncio dos pássaros –
este o qual nunca esbarramos 

esmorecer na seiva da tua saliva 
ainda morna após um longo sono
ainda que o meu corpo esteja 
a palpitar feito as asas do canário
pousado neste cubículo iluminado 

posso te entregar as palavras e a beleza
não concluídas, ainda que distante
o meu gesto requer mais do que carícia
e sim a tua fúria de Capricórnio 

um cosmo na polpa das minhas pernas
entre-abre o espaço o vento o tempo
entre eu e a poesia, requerer da tua face 
além do amor o resquício do ódio

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

CAIXA DE FÓSFOROS

A memória do fogo. Antes do pó – ou da ferrugem do corpo –, o fogo. Anterior ao desejo, o que o nomeia – a sua chama incontornável. Do ato de comer-nos com as mãos em brasa), faíscas. A memória não hesita ao rastro do gesto e, por mais apagada que estivesse, persiste pela sua intensidade. A atração nos ilumina.

 

amar

como sentar-se

a lareira

 

contenta-te com a

inquieta e deformada

chama-

me

 

à frente

dos olhos

  

O exercício de reunir caixas de fósforos teve início a partir do contato com o arquivo de Foed Castro Chamma no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, situado na Fundação Casa de Rui Barbosa. O arquivo de Foed era intocado, abri as suas caixas cheias de fogo da memória. Meu corpo, esta caixa que se derrete pelo arquivo, ateou-se ao ofício de escrever poemas, labirintos. Dentro de caixas de fósforos criar a história do fogo, o meu.

As caixinhas são da marca Paraná, fabricadas em Irati, cidade do Foed. Ir a ti, Foed. Eu vou ao teu encontro. Me atiro.

Penso nesse exercício de lapidar esta memória atravessada pelo arquivo do poeta. Abro os seus diários sem pudor, degusto o doce-amargo. Remoo as lembranças, crio cenários, imaginários.

 

26 JUN 2023

O arquivo é sempre um abismo absoluto, cego e sensível. Sempre que vou ao seu encontro, desencontro o meu objetivo primeiro. Hoje, por exemplo, tive a pretensão de reunir todos os diários do Foed em uma só pasta. Nessas horas os meus olhos acariciam a paisagem. Quando me vi estava retirando grampos enferrujados de papéis, pilhas de ementas e anotações de simpósios de filosofia ministrados na UERJ, fiquei aflita quando vi aqueles ferros carcomidos manchando os documentos do meu poeta. Sou zelosa quando declaro desta forma que o poeta é meu. Mas trancado em caixas dentro de um museu, sinto que sou a sua amante. Cuido do seu acervo como uma mulher a preservar a sua liberdade. Por detrás das folhas, diversos desenhos que o autor em suas horas ociosas de eventos criava, retratos de rostos avulsos, confusos, entediados. Eu me reconheci em um deles, com o rosto compenetrado e um cigarro aceso entre os lábios. Por que você não me escreve um poema?

 

Risco um fósforo. Risco as palavras. Risco. Me arrisco no ato de fabular a memória. Meu arquivo. Antes do pó, o fogo. 

domingo, 27 de agosto de 2023

Carlos

a palavra 
nos leva à solidão 

a solidão nos leva à palavra 

nós
que nos calamos

– Carlos 
não se mate,
calos nas mãos –

diante de nós
esta escrita decepada. 

verossimilhança

disse-me “você me soa mais sóbria”
e que lhe parecia diferente 
a minha imagem. 

eu não lhe perguntei em troca 
que diferença era aquela 
que eu era comparada. 

mas os seus olhos me soavam 
embebidos pela semelhança. 

ao pó

teu nome é desejo, Eros 
me engasga com a palavra final

alucinada, 
o teu som de espáduas 
rangendo o cal 

nenhum semblante 
a não ser o do ciúme 

devolva-me a minha pátria. 

sábado, 26 de agosto de 2023

este jardim

vendia flores e poemas
aos dezessete flores 

versos em vasos 
orquídeas sanguíneas 
nos braços, rosas e espinho 

desabrochando 
neste ofício: florista

naqueles dias de estio 
de uma nova estação  

hoje ainda vendo poemas e 
e este jardim

na primavera do meu coração. 

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

24/AGO/23 

Naquela semana, cheguei mais cedo ao museu todos os dias. Das nove às sete. Estou obcecada pelos papéis, as mãos enluvadas por finos cortes finos, sinto o cheiro da minha insônia avermelhada. Páginas e mais páginas. Rosângela me chamou para conversar. Na noite anterior houve o lançamento do Rodrigo de Souza Leão, eu disse entre risos, estes amarelados como os papéis e os dentes das feras, que eu queria entrar para o museu, mas que antes deveria estar morta. Me viu sondando uma nova pasta do Lúcio Cardoso, revirou os olhos de atenção. Você precisa de alguém para cuidar de você também. Não vá enlouquecer. Você deveria tomar um sol aos domingos. Ver o mar, mas não se afogue até os olhos. Fico sem palavras nos momentos de intensa seriedade. Não consigo mais esconder o meu labirinto, finco os rastros com afinco. O arquivo me tomou o sol aos domingos. 

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

e se acordei?

adormeci com o cenho da tua palavra 
na feição da minha memória

sonhei o sonho dos meigos 
e daqueles sem necessidade 

e se acordei?
ainda me indago 
você poderia me devolver a realidade? 

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Sabes/Sabés - Idea Vilarino

Sabés

Sabés
dijiste
nunca
nunca fui tan feliz como esta noche.
Nunca. Y me lo dijiste
en el mismo momento
en que yo decidía no decirte
sabés
seguramente me engaño
pero creo
pero esta me parece
la noche más hermosa de mi vida.
.

Sabes 

Sabes
disseste
nunca 
nunca fui tão feliz como esta noite. 
Nunca. E me disseste 
no mesmo momento
em que eu decidia não dizer a ti 
sabes 
seguramente me engano 
mas creio
mas esta me parece
a noite mais bonita de minha vida. 
.

Sabés - Idea Vilariño (1920-2009)
Trad. Gyzelle Góes
.

VILARIÑO, Idea. Poesía Completa. Montevideo: Cal y Canto, 2012.

sábado, 19 de agosto de 2023

ao vampiro SUL

com a unha nas carnes
a carne nas unhas
pensávamos é preciso 
cavar mais fundo o poço
este poço fundo
sem fundo 

com o sangue na boca
e nos olhos o sangue 
sangue no sangue 
boca e olhos
até você me 
perguntar o que é paixão
com todos os signos 

a palavra na língua 
o filete escorrendo 
a verdade é que 
os seus olhos
escondem toda a sede 

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

arrítmica

no cio de te escrever um poema 
penso no pequeno som
e o sim que faz o meu
coração

quando você se projeta 
na luz da meia luz 
intento arrítmica 
uma canção

versos no verso de um cordel
dez exercícios a matéria 
da tua face 
no refrão 

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

teu nome

coloração de escamas de águias 
escatologia, rasura de uma palavra. 

na penumbra o copo de água 

verde turquesa, feixe da bruteza
aprisionada a uma pedra na orelha. 

dos olhos dos amantes a delicadeza. 

espécime mais rara que a minha boca pousou. 

terça-feira, 8 de agosto de 2023

convite

poderia me alongar 
sob o bordado 
do teu passado 

o que dizer a ti 
ou de que modo? 

rente a margem 
o mar inundado 

vi os olhos 
das folhas das árvores 
das esquinas secas 
por teu nome árido 

a tua ausência 
é uma noite curvada

velas intactas 
ou balões perfurados? 

uma festa surpresa 
que te fiz sem a intenção 
mínima de convidá-lo 

sábado, 5 de agosto de 2023

diário

o meu amor ouve
o teu rasto invisível
o louco silêncio previsível 

maciez impávida 
das paredes acústicas, incólumes
(me parece um útero este lugar) 

eu diria que te amo diante dos teus olhos 
é que a minha sombra este poema oculta 

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

prancha de surf

certa vez um livreiro
se aproximou de mim
na esquina da estante 
de poemas 

e ele falou assim pra mim
como se fosse um segredo
com a voz de rasgar
alças de vestidos 
com os dentes

se você quiser viver com um pouco 
de dignidade esqueça 
os poemas 
vá surfar 

e desde aquele dia eu sonho
com as suas costas 

aquário

poderíamos ter a ilusão vivenciado
de que o amor nos faria letrados 

poemas dentro de estrelas

no fundo de quartos, cubículos
dentro de paredes descalças 

poderíamos ter descançado 
após um dia de trabalho 

você escrevendo
um romance e eu 
buscando vivê-lo 

enquanto esquento a água 
o paracetamol e a noz-moscada 

poderíamos ter ido ver a feira
de mãos dadas

decorado o nome desta rua 
e desta solidão que se projeta
como a sombra de uma árvore 

poderíamos chamar de destino 
mas você 
e eu... 

não lembramos sequer 
o nome dos nossos peixes 
dentro do aquário

terça-feira, 1 de agosto de 2023

de duas, uma

ou se morre de amar 

ou você 
pode esperar 
em um banco carcomido 
na beira de uma calçada 

aquilo o que a vida te prometeu 

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Baile de Formatura

Mas poderia ser desses amores de cinema
Eu tremo quando te escrevo
Dessas manias diversas de reagir

Em um tom de tela descontraída
Assisto ao teu sorriso diferente a cada riso
Instigo que me olhe enquanto digo
Sobre outro poema

Esse daqui eu quero que veja
Que é sobre os teus olhos

27.07.2019

quarta-feira, 26 de julho de 2023

26 JUN 2023

O arquivo é sempre um abismo absoluto, cego e sensível. Sempre que vou ao seu encontro, desencontro o meu objetivo primeiro. Hoje, por exemplo, tive a pretensão de reunir todos os diários do Foed em uma só pasta. Que ingenuidade, nessas horas eu concordo que meus olhos acariciam a paisagem. Quando me vi estava retirando grampos enferrujados de papéis, pilhas de ementas de simpósios de filosofia ministrados na UERJ, fiquei aflita quando vi aqueles ferros carcomidos manchando os documentos do meu poeta. Sou egoísta por declarar dessa forma que o poeta é meu. Mas trancado em caixas dentro de um museu, sinto que sou a sua amante. Cuido do seu acervo como uma mulher preserva a sua liberdade. Por detrás das folhas, diversos desenhos que o autor em suas horas ociosas de eventos criava, retratos de rostos avulsos, confusos, entediados. Eu me reconheci em um deles, com o rosto compenetrado e um cigarro aceso entre os lábios. Por que você não me escreve um poema? 

26 JUN 2023

Retorno lentamente ao imaginário de criar autoretratos. Estender a sombra, a medida dela. O voo, a palma da mão anterior ao adeus, o pigarro do mar distante, a água inquieta a qual nunca pus os pés. Hoje F. me respondeu um minuto depois da minha carta, solicitei um encontro, mencionei o meu delírio, é possível que ele se sinta responsável caso uma tragédia aconteça. Ele sente vibrar o amor de longe das minhas palavras. Sou polida, no entanto, disfarçadamente, e o disfarce não é capaz de ocultar a paixão e a obsessão, entrego o meu desejo em uma bandeja de prata. Desejo, meu nome. Desejo, a face que acalento por detrás da máscara. 

terça-feira, 25 de julho de 2023

feliz dia do escritor

Máquinas Underwood e Olivetti de escrever de Clarice Lispector no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira. Feliz dia do escritor. 

"Como máquina é parecida com uma pessoa e às vezes de puro cansaço enguiça, o ideal era comprar outra Olivetti como máquina suplente porque não posso me dar ao luxo de parar de escrever. Máquinas, qualquer uma, são um mistério para mim. Respeito-lhes o mistério." 

Propaganda de Graça, In: Todas as crônicas de Clarice Lispector, Ed. Companhia das Letras 

quarta-feira, 19 de julho de 2023

a porta: se você estiver, eu entro por ela

há uma parábola instigante 
de Franz Kafka que nos aponta:

se há uma porta, 
por que você não entra? 

mas, há uma porta?
essa talvez pudesse ser a questão

além da lei que nos obriga a pedir
para entrar permissão 

mas o buraco é mais fundo:
você estaria atrás dela? 

quarta-feira, 12 de julho de 2023

camuflagem ou o poema por vir

cores e carpas,
o coração, bravio,
no interior do poema 

risco os teus ouvidos, camuflado
brincos de escamas 

brinco. movido de mudez,
os teus ouvidos. 


sábado, 8 de julho de 2023

guardar a ti

guardar 
o seu nome 
em um vilarejo 
ainda mais reservado

do que um poema
na gaveta do armário 

segunda-feira, 3 de julho de 2023

um poema óbvio

explico-me sobre o que quis dizer 
com o poema que tenho em mãos 

ele me pergunta porque eu faço isso
se o acho insensível a ponto 
de não compreender 
um poema tão óbvio

ele sempre tem 
uma arma nas mãos
e eu continuo a ler poemas 
sem pausas, ele fica estático
com o copo de vidro suado nas mãos

olho para o outro lado da rua
o letreiro do posto de gasolina 
me atrai por alguns segundos

ele me pergunta porque eu faço isso
se o acho insensível por não ler 
um silêncio tão óbvio 

quarta-feira, 28 de junho de 2023

ficção-morte

das vezes em que morri 
a morte de saudade foi a morte 
mais duradoura, o coração dentro 
de um tanque debaixo d'água.

houveram mortes catastróficas,
morri de esperança, quando se espera 
neve no deserto, dormi em pleno terminal
a espera do trem sob meu corpo. 

vocês aguardam que eu confesse 
que eu morri de amor, mas é nessa morte 
que me sinto viva, foi morrendo 
de amor que eu finalmente nasci. 

furta-me a cor do arco-íris

seus olhares 
continuam a encharcar 

as quinas 
das mesas 
dos butecos 
assim oblíqua 

se algum dia 
eu te encontrasse amor

sem pressa 
e garoa 
entre 
as retinas 

para ver o sol secar eu te convidaria

domingo, 25 de junho de 2023

nós e o fim de tarde

há dois dias esqueço de te escrever 
sinto uma melhora na viçosidade 
da minha pele, peguei 
uma gripe leve

visto que estamos no início do inverno 
coloquei para tocar Cássia na rádio 
do carro, tomei café 
da manhã à tarde

e me distrai de lembrar de você 
e tudo isso para dizer que eu já 
não te amo mais 

sábado, 17 de junho de 2023

Página F.

não posso anunciar o seu nome
mas fico a delirar qual seria 
a primeira palavra a escapar 
da minha boca depois do nosso beijo

na varanda solar ou debaixo 
de uma marquise ruída 
nós e o silêncio de um balão em junho 

seria a palavra inaugural para mim
eu renasceria depois de nós
nem mulher e nem poeta
seria uma boca beijada
depois um corpo

e talvez o projeto de um livro 

terça-feira, 13 de junho de 2023

dez e quarenta e oito

havia-me esquecido de ti, coração, 
até você chegar pelas dez quarenta e oito

pela rachadura eu te escuto 
arranhando o meu dia, 
lembra-me aquela música 
da sala de estar cheia de botões de rosas 

enviando-me uma mensagem 
de áudio com uma voz de arranhões 

parece que você está zangado comigo,

mas eu havia-me esquecido de contar 
o fato de que eu realmente havia-me 
esquecido de me apaixonar 

e eu nem quero lembrar-me mais disso  
até você chegar pelas dez e quarenta e oito 

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Diário I - O retorno do Arcanjo

Quarta-feira comecei a ler o quarto diário de Walmir Ayala, Sangue na Boca. Ayala, através das memórias cotidianas, me conta sobre um homem noturno, febril, quase infantil, não pela sua inocência, mas pelo modo cristalino como relata as suas experiências vermelhas como rosa em delírio. Meu coração fica a ponto de estourar quando os dias vão percorrendo o corpo do poeta, a escrita-carne. Este domínio da linguagem do memorialista é de estender os ossos, me tira do frio deste quase inverno. Fui à casa em Laranjeiras de André Seffrin, o guardião do arquivo de Walmir. A rua do André é íngreme e sinto que chego a tocar o céu subindo, tenho de apagar o cigarro no asfalto no meio do caminho, se não, não termino a caminhada. Na casa do André o cheiro de mata e de livros é como eucalipto para os meus pulmões, sinto como se abrisse um livro em uma casa isolada no campo. André me contou dos títulos dos diários de Walmir, Sangue na Boca porque é preciso ter sangue nos olhos, inclusive na boca, por onde escorrem as palavras. Além de fugir, o Arcanjo antes fez a descida. No caminho ao Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, um homem se lança da ponte. O carro atravessa o pedaço de asfalto intacto de sangue, antes dele escorrer. Assisto ao sangue. Sangue na boca. 

Cartas a Sebastião

Caro Sebastião,

Revisito a capa de A ficção vida. Você, poeta, nascido em Pernambuco de 1935, assume a sua relação com o Rio de Janeiro, cidade para onde se mudou em 1965 e morou até a sua morte. Transeuntes no centro da cidade do Rio, cobertos pelo sol dos dias, os corpos e suas miragens. O trânsito de pessoas, de automóveis, inundados pelo cenário das ruas: “Da Avenida Central / Este é o melhor / Dos mundos incompossíveis / Domingo 07.30 PM / Prédios Dormem / Passo a toda vela / Mas fico imóvel”. Há vida passando a toda a vela, quem dorme? São os prédios acesos no centro da cidade grande. “Dentro cutias corredoras/ Róem na relva / Deslizam furtivas mas / Não são ratos / Róem o tempo todo." Dentro do poema e da cidade - as cutias, que não são ratos, mas que roem, correm, deslizam, corroem, o tempo, a Vida.

terça-feira, 6 de junho de 2023

Cartas a Sebastião

Caro Sebastião,

Estive ansiosa para folhear os teus álbuns de fotografias, memórias fotográficas. As imagens dizem sobre aquilo que o tempo paralisou no instante de um instante de luz. Assim como a escrita, as fotos possuem linguagem, uma forma de dizer silenciosa, escura. E esse silêncio se estende sobre nós. No seu arquivo eu só encontrei cinco fotos, quatro delas três por quatro. É irônico, você concorda comigo? Você se revelando em 4 fotos 3x4. Relembro das suas cartas trocadas com a sua irmã Célia, ela dizia que você devia se soltar mais, descontrair, sair e deixar de ser tão retraído. Olho para a única foto da tua infância, diferente das fotografadas na fase adulta, você carrega no rosto um meio sorriso. Abraçado ao braço esquerdo, aparentemente se agarra a um ramo de flores, na mão direita um objeto não identificado, que talvez fosse um brinquedo, não, é um terço. A roupa formal, branca, nos convida à cena dos bastidores do seu batizado. Ao fundo um quintal, vazio, só você posicionado no meio do quintal da infância. De pés alinhados, o menino posa para foto, e os seus olhos – o único canto que não se deslocou.

                                                                               

                                

Lírica

nesta primeira hora da solidão
nós somos intrusas 
na casa do amor

o botão explodindo da tua camisa
transgride as malhas 
da linguagem 

todas as horas após
o nosso Deus anunciar o sono
eu já ansiava a invasão: 

de paraíso o teu estrondo à porta. 

quinta-feira, 1 de junho de 2023

poema oco

eu queria era criar uma margem
terceira em teus braços

entorno do sol de maio
dia 32

que fundássemos uma semana 
inteiriça de feriados cariocas 

(que dormissemos em ocas) e 
modernidades/pós e contras

fazer um poema sem forma
somente com a forma 

do teu jeito de ler o meu poema oco 

terça-feira, 23 de maio de 2023

mínima faísca

reparei-os pela manhã,

ao invés da cor dos terremotos
e da carne dos falcões, 

eu reparei seus olhos vermelhos

mais vivos do que a coloração 
da íris dos vulcões

no dia em que eu abrir 

o meu coração
a você você vai reparar

como é avermelhado 
o meu coração: 

basta uma mínima faísca. 

domingo, 21 de maio de 2023

meteoritos

meteoritos 
que se carbonizam
desaparecidos 

revelam no céu 
o ponto de luz 
respingando 

o rastro o rosto

estrelas 
que se apagam

mas antes uma luz
inesquecível

nunca antes vista:
teus olhos no colo da noite 

quarta-feira, 17 de maio de 2023

rabisco um sol no tronco

recordo dos dias joviais 
os quais eu te via pelo 
vínculo maciço da porta 

da sua figura de óculos da largura 
do rosto escuro, cintilando 
melado pelo sol esverdeado 
ao som da tarde macia 

eu queria era descascar 
uma tangerina sob o vínculo 
dos seus dedos, com zelo 
sob os nossos míseros pecados 

debaixo de uma oliveira 
contigo, eu que bem te vejo 
entrecortado de sol verde nítido 

maduro ao meu lado
debaixo da sombra dos rostos 
desajustados, o seu pescoço
meigo cheirando a mel de tangerina 

você me conta com detalhes 
sobre o seu passado, eu fico contente 
de passar o fim dos meus dias contigo

risco as nossas iniciais no tronco 
das olivas, brinco com o seu 
sobrenome na terra, rabisco um sol 
no tom do seu corpo amadeirado 

domingo, 7 de maio de 2023

onde dormem os barcos

inicio um poema de mãos ásperas 
da maresia que ilustrei o teu nome
coisa boba e rara 
um marisco,
o rabisco
ao chão uns grãos de areia da casa

eu te aponto que os poemas em
(teu nome) são passos entorno da 
     e
   n
 s
e
 a
  d
    a 

terça-feira, 2 de maio de 2023

bolas de gude

mas o jeito como você desliza
feito bolas de gude
pelas minhas pernas,

me faz sentir como se eu devesse 
começar todos os poemas 

dessa forma,
brincando com os teus olhos. 

terça-feira, 25 de abril de 2023

anjo sem órgãos

i

me dói as tripas,
como me dói a vida, meu deus! 
recordo a ti ninando o meu berço,
clamando por leite materno 
eu te peço o peito para me encolher 
sem queixas, ausente disto viscoso 
o que vibra das minhas vísceras.

eu quero um colo, meu deus. 
eu que me lembro de ti 
nesta hora sem data, sem hora
me converto em tuas mãos 
um caracol
sem cobertas,
apenas um último sono. 

ii

apenas um último sono
e eu seria a menor mulher dentro 
de uma cama, sem choro
sem queixas, apenas um sono
daqueles que te chamam 
à meia-hora da hora sem fim, 
quente como devem ser as crianças 
puras, como me dói e se eu pudesse 
ai, se eu pudesse! eu te entregaria 
o meu corpo ainda úmida. 

ai, se tu me entregasse o meu corpo 
de volta! sem órgãos, sem lenço 
apenas as tuas mãos mudas,
rubras, cobertas rugas e versos. 

quinta-feira, 20 de abril de 2023

deste eu sem mim

o que você espera desta hora vazia
deste cinzeiro cinza, transparente
o meu rosto tão cego a tarde

ou melhor, o que você espera, ainda
nesta sala de quebra-cabeças
quadros revirados antiquados 

o que você espera deste eu sem mim? 

domingo, 16 de abril de 2023

Mr. Dylan

porventura fosse eu uma máquina 
de escrever delírio. 

delícias, tormentos 
d'um tropical inventivismo lírico. 

embora me sinta contigo como se 
eu fosse uma máquina feliz 
na estante, delirante, rio. 

quarta-feira, 5 de abril de 2023

a distância entre dois corpos e o ofício

eu e uma mesa 
de mogno sem fundo 
repleta dos papéis 
enquadrados à mão 

encarquilho-me neste ofício 
da escrita e confesso que coro -
tenho desejos profícuos

você na escrivaninha 
ou no sofá com fundo
refletido pelos papéis
desenquadrados ao colo
envoltos aos pelos 

a gente se olha, desiste do ofício 
e se espelha sobre uma nova posição 
entre dois corpos no cio 

domingo, 2 de abril de 2023

o mar ausente

me entristece, não de uma tristeza lúcida, 
embora ela seja visivelmente justa, 
que nos tenha sido arrancada 
a infância

encaixo-a (a infância, a tristeza) 
nos poemas dominicais, 
me encolho no ventre da tarde, 
penso com os meus lençóis 
que os Deuses
nos abandonaram no berço 
dentro de uma banheira sem fundo

Rosa especularia que o rio tem 
três margens, saibamos
afogando que o mar não está para os 
peixes como está para os cardumes

e que por mais que a gente se debata

é só através do choro (da lágrima, da tristeza)
e então nós nos afogamos 
com a delicadeza daqueles 
que supõe que lhes foi 
arrancada 
a única coisa

salva desta infância, 
onde nos teria sido permitido 
chorar sem os olhos, sem fundo 
o mar ausente de animais marinhos 

quinta-feira, 30 de março de 2023

mato seco

queria te acompanhar 
ao cinema lá do mato seco
que você nunca tocasse 
nos poema que te escrevo

apenas que me olhasse 
pelo buraquinho
entre os joelhos

o filme se projetaria 
em meu interior 
uma sala sem mobília 
ecoando na parede um espelho 

terça-feira, 28 de março de 2023

livros amarelos dos teus olhos

imagino a vinda teus olhos amarelos
três dias sem descanso 

antes e depois dos teus 
amarelos feito os livros dos museus

você me faz pontar os lápis 
a ganância de aquarelar o sono 

você me faz vontade de ser o amarelo 
dos livros teus olhos dos museus 

quinta-feira, 23 de março de 2023

camuflagem

cores e carpas 
o coração, bravio, 
no interior do poema por vir

risco os teus ouvidos, camuflado,
brincos de escamas 

brinco. escuto-o, escrito de mudez 

quinta-feira, 16 de março de 2023

Eliezio

                                          In memoriam 

sinto a falta do teu cheiro pela manhã
quando você me acordava 
com o seu cheiro junto ao café
eu sinto calor quando lembro de você 
me acordando e olhando para o céu 
ao lado da minha cama 

sinto falta da tua risada 
que eu sentia aqui do meu quarto 
do teu sorriso encabulado e introvertido  
da altura do teu sorriso maior do que
todos os sons da TV

sinto falta de ver você deitado
assistindo aos desenhos animados
levantando para fumar um cigarro
e bater um papo discutir sobre qualquer 
bobagem do dia só de te ouvir
eu sinto saudade de você calado
de você fumando um cigarro ao meu lado 

sinto saudades de ouvir você passeando
pela casa o tom dos teus chinelos
dos tacos você estourando pipocas
você fazendo um suco de limão 
você me fazendo questionar porque 
você não está mais aqui 
dentro dos meus braços
eu dentro dos teus abraços 

o mundo é menos caloroso
sem você para repartir 

desértico

revisa a minha língua 
ao fim da tarde de um dia 
lilás-cinza 
 
a delicadeza da pupila 
rasgando-nos 
as vírgulas

por você eu desertificaria
o deserto por acaso 

segunda-feira, 6 de março de 2023

claustofobia

límpida poça lodosa
e obscura: poesia

os ossos
encolhidos

como se dentro dela uma gruta
este sonho se revelaria 

os olhos 
tão desinibida

sorria sem dentes: misericordiosa 
os lábios me estendia 

beije-a entrecortada
entregue à poesia

à tua clausura
embora em sonhos tomei-a

como se fosse minha 
como se fosse ela quem me possuía 

sábado, 25 de fevereiro de 2023

armar um circo

o sol espetaculoso 
pediu que descessem os equilibristas
pelos pescoços das girafas 

não esperarávamos que as girafas 
haviam nascido dentro de grandes 

pescoços curtos 
saias longas e franzidas 
os olhos mornos dos palhaços 

tua voz sorrindo do meu rosto enrugado

você que surge como atração
de um show que eu troquei 
por um algodão doce verde claro 

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

outro

De tanto andar uma região 
que não figurava nos livros 
me acostumei às terras obstinadas
em que ninguém me perguntava
se me agradavam as alfaces 
ou se preferia a menta 
que devoram os elefantes. 
E de tanto não responder 
tenho o coração amarelo. 

Pablo Neruda
Trad. Gyzelle Góes 

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

ao meu declínio

leio o destino nas rugas 
abrigadas à marquise dos olhos

um trem
partido, partindo 
a voz desencarrilhada 

em qual ferrugem dormiu a minha sombra? 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

chuva de verão

eu que não deito ao teu lado
mas que ao teu lado estou

assim como uma nuvem ríspida 
se desfaz do tempo
das folha das árvores 
frágeis da nossa rua de límpida saudade 

você que diz querer abrir uma porta
uma lasca no meu coração 

este que te arreganho debaixo do colchão
ter você é como carregar nas mãos 
uma chuva áspera de verão

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

a espuma dos dias

você que me abre os olhos mais cedo 
do que o Sol de meio-dia
e interroga os meus olhos de Rio,
a espuma do meu travesseiro,
que me abre os livros,
me abre

o sorriso que eu havia distraído. 

terça-feira, 31 de janeiro de 2023

o símbolo do infindo

como posso ser inseguro à noite
se a sombra, flor rente ao espinho,
à luz do dia se revela fragilizada. 

se o corpo, teu templo,
como uma gruta faça guarda 
ao grito, brado da minha alvorada. 

como poderei temer o beijo último
se a minha boca suplica um gole fino 
da fonte do teu escuro.

como ter medo do confim 
se contigo, mesmo que breve e findo, 
sou cinza, fogo, símbolo.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

pistache

hoje é o dia da saudade 
remoo a dureza da pedra 
portuguesa agarrada à nossa rua

o tilintar dos dentes e dos piscas-
-piscas seus olhos frescos 
arrenhados à janela

queria te espiar pela fresta 
mas o tempo permance trancado 
eu preservo o meu coração
em um pote de sorvete trincado 

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

solidão das praças

oferendar a água bruta 
costurada ao meu umbigo 

ser o dente, a lâmina gasta 
tropeçar na orelha de uma capa

hoje eu sonhei com uma praça 

há tempos que não decido levar a sério
esta solidão das pracinhas 

o pombo faz o rugido 
rígido o sangue já se esqueceu

o ser, próspero e líquido
escorrega, rasga e cega a faca 

sob a pálpebra

é primavera neste bairro
o verão a todo sal, travessa 

ilustro a quimera
tijolo por tijolo 

a você que o sol se abra 
sob o olho 

volto a esta orla
retrato, pátria 

porque será que o sol se esconde 
sob a pálpebra 

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

ônibus-fantasma

ônibus fantasma 
segunda-cinza,
o fio do secador 
desfiado em cima da pia. 

o pássaro por um fio
se agarra à cidade 
amarela. 

na faixa eu me sinto 
mais segura, 
eu com a minha pressa 
por um fio não me atropela. 

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

divã

ainda que os escorpiões 
se revelem a relva do dia 
perduras em meu corpo

cal, prisão 
em meu corpo 

ainda que se esconda 
turva e pétrea vértebra 

ainda que o amor 
seja um divã em silêncio 
que nos diagnostica 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

roupas de verão

foges de mim: cão
fogo, artifício

você, criatura 
sol ressecando

as minhas roupas de verão 

rocha alquímica

a ave se agarra a ti esplêndida 
gestos, garças e deuses 
voo bravo, tua boca - 
verdadeira rosa infâmia 

círculo, espelho - 
o reflexo na moldura de uma moldura 
perplexa no sótão, a tua presença 
evoca a sombra da noite pétrea 

sob a borda rósea lua gélida 
o beijo pedregoso de pétala 
alado ao desejo indômito e abisal 
canto frágil, luz sem sol 

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

um romance carbônico

nesta hora branca do dia 
a ser feito nada há a não ser 
escrever um poema rítmico 

traio-nos e cogito a gentileza 
dos auto-móveis
há de saber pilotar as máquinas
os livros debaixo do travesseiro

tropeço nesta ausência
amarelada nos ombros da tarde 
vestida de cinza 
a terça-feira convida-nos ao jantar 

há de ter uma manhã sem juízo 
que me convide a tragar 
a droga de um romance insípido

exije a mim que tire o vestido 
incômodo do retrovisor
há de ter minúcia no olhar 
atropelada pela tarja preta do título