segunda-feira, 4 de setembro de 2023

CAIXA DE FÓSFOROS

A memória do fogo. Antes do pó – ou da ferrugem do corpo –, o fogo. Anterior ao desejo, o que o nomeia – a sua chama incontornável. Do ato de comer-nos com as mãos em brasa), faíscas. A memória não hesita ao rastro do gesto e, por mais apagada que estivesse, persiste pela sua intensidade. A atração nos ilumina.

 

amar

como sentar-se

a lareira

 

contenta-te com a

inquieta e deformada

chama-

me

 

à frente

dos olhos

  

O exercício de reunir caixas de fósforos teve início a partir do contato com o arquivo de Foed Castro Chamma no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, situado na Fundação Casa de Rui Barbosa. O arquivo de Foed era intocado, abri as suas caixas cheias de fogo da memória. Meu corpo, esta caixa que se derrete pelo arquivo, ateou-se ao ofício de escrever poemas, labirintos. Dentro de caixas de fósforos criar a história do fogo, o meu.

As caixinhas são da marca Paraná, fabricadas em Irati, cidade do Foed. Ir a ti, Foed. Eu vou ao teu encontro. Me atiro.

Penso nesse exercício de lapidar esta memória atravessada pelo arquivo do poeta. Abro os seus diários sem pudor, degusto o doce-amargo. Remoo as lembranças, crio cenários, imaginários.

 

26 JUN 2023

O arquivo é sempre um abismo absoluto, cego e sensível. Sempre que vou ao seu encontro, desencontro o meu objetivo primeiro. Hoje, por exemplo, tive a pretensão de reunir todos os diários do Foed em uma só pasta. Nessas horas os meus olhos acariciam a paisagem. Quando me vi estava retirando grampos enferrujados de papéis, pilhas de ementas e anotações de simpósios de filosofia ministrados na UERJ, fiquei aflita quando vi aqueles ferros carcomidos manchando os documentos do meu poeta. Sou zelosa quando declaro desta forma que o poeta é meu. Mas trancado em caixas dentro de um museu, sinto que sou a sua amante. Cuido do seu acervo como uma mulher a preservar a sua liberdade. Por detrás das folhas, diversos desenhos que o autor em suas horas ociosas de eventos criava, retratos de rostos avulsos, confusos, entediados. Eu me reconheci em um deles, com o rosto compenetrado e um cigarro aceso entre os lábios. Por que você não me escreve um poema?

 

Risco um fósforo. Risco as palavras. Risco. Me arrisco no ato de fabular a memória. Meu arquivo. Antes do pó, o fogo. 

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