quinta-feira, 19 de outubro de 2017
Um lugar ao sol
Mãos enormes. O papel me encarava de cara pálida a condenar tanto espanto, o estrangeirismo da largura da minha palma. Eu tinha um conto inteiro para escrever, desativar o despertador, ração do cachorro, que agora me encara também, como quem diz, mas ele não diz porque é cachorro e tem quatro patas. Eu possuía mãos finas, tanta leveza, ágeis, eram como conchas que, bem unidas, levadas ao ouvido, também transmitiam a calmaria do mar, o silêncio do amar amedrontado. O cão ainda me olha e agora eu acho que é questão de carinho, a folha tem medo das cócegas. Eu temo tanto que é necessário escrever, ou falar com alguém mais próximo que não seja a porra de um animal calado, me masturbar. Ainda não me masturbei, não tinha pensado nisso, sequer pensei em pegar na estante mais alta a lista que fiz das formas líricas de suicídios. Agora possuía o dobro de dedos e não me satisfazia. A solidão nunca tinha tocado tão fundo como se a ponta de uma lapiseira 0.7 fincada dentro de mim quisesse ferir e carimbar o atestado do fracasso de uma escritora manca. Não sei se manco é nome para mãos ou pés, mas eu pensei em Aleijadinho e sei que no Rio de Janeiro a arte é segregada, se eu não quiser fritar na praia tenho que escolher um lugar ao sol. Ainda possuo mãos, mas não sei usá-las, elas estão mortas? Vocês morreram e agora putrificam tragicamente num espetáculo de mau gosto? Eu me perguntava. Eu me desconhecia. Eu não quero me tocar, esse pedaço anônimo pairado bem em frente aos meus olhos, isso não sou eu, esse corpo não é meu, o latido, o cheiro de mijo grudado no taco quente exposto ao sol iluminando um cantinho abandonado do apartamento. Naquele ambiente, tudo esquecido, lembrava que até eu não sabia de mim. Não possuía identidade naquela manhã, mas quem fui? O que fiz? E o meu nome? Não assinei papéis, me desconhecia, nunca me toquei. "Vivemos no subúrbio dos medos", não era um sonho, mas chamo de pesadelo, despertador ainda ativo, meu medo. Mãos estrangeiras acenderam em mim o resquício de crença em um Deus vingativo, que desejava a minha ruína, meu perdão. Ajoelhei no espaço abençoado pela luz, mãos espalmadas repousaram ao chão, o cachorro deitou em cima, um lugar ao sol; um lugar, o sol e a minha devoção.
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