quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

gastei uma garrafa de Dom Bosco 

era o lançamento 
de poetas do Brasil 

quanto à mim
estou lançada no mundo, 

os órgãos se reviram 
na beira do intestino

não é que dê tempo de recolher 
o que
deixei entranhado 

só posso dizer discretamente 
do seu jeito, 

é o mistério das árvores 
à espreita fazendo sombra

assim remoo o que vim fazer 
aqui tão desprotegida

te olho de um jeito que me parece frágil 

visto da minha boca 
eu pintei a sua 

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

ampulheta

à tudo o que não pude calcular 
com os
dedos da mão 
e porventura não deixei cair 

aqueles que não temem 
a hora da lágrima
talvez 
sejam os 
mesmos 
que aguardam
o indício da queda 

eu vi a ponta do planeta 
amarelado 
apontando 
para os meus dedos 

eu posso contar 
quem amei 
sem o 
receio
daqueles que prometem 

quando me dei 
por perdida 
quando 
além
dos 
meus rastros não só 

eu os 
havia 
deixado 

alguém me carregava 
como dromedário 
naquela areia 
relutante do tempo 

refletir o 
amarelo 
do planeta 

posso voltar ao dia 
em que vi-o  
seu rosto 
se projetando 

partículas mínimas macias 
a firmeza advinda 
do seu gesto amiúde 

inteiriça me permitira 
ser conduzida
pela força do desconhecido 

devido à sede 
o silêncio 
era mais
demorado

sem contar pois 
deixara 
de usar 
as mãos 
segura 
para beijar-te 

quem mais 
poderia 
dizer 
do meu descuido acalorado?  

o que quero falar a ti 
da minha entrega 
é que fora
em seus braços
a chegada à uma nova terra 

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

te amar 
a ponto 
de cingir o Sol

perder 
à vista 
dos olhos 
e dos óculos 

o protetor e a vaidade 

te amar 
no asfalto 
no meio 
do meio-dia

de pés o corpo o chão descalço 

amar você 
com zelo 
assanhar os pelos 
secar a língua 
com o corpo os pés no chão 

te amo o amor que não é covarde 

domingo, 27 de dezembro de 2020

a paixão me causou o mal estar 
dentro das manhãs sadias 

me causou o impertinente delírio
: acordo desacompanhada 

a mesa melada de tinto e as uvas
podres de anos no jarro 

derramou o que eu tinha de água
é de paixão que eu sinto sede e repulsa 

é de paixão que eu me destruo 

sábado, 19 de dezembro de 2020

luz e sombra

da pele nada escapa 

a suavidade das tuas palavras 
escolhidas 

a projeção da tua luz
espantada 

a escuridão se revela 
dentro da boca o céu está piscando 

fragmentação

minha unha se partiu enquanto eu
procurei te escrever 
pensei então em usar essa desculpa 
para falar do coração
as pessoas morrem de verdade
quando o coração literalmente quebra
quando eu digo que minha unha partiu
você não pensa que ela foi embora
então porque você acha que um coração
não pode realmente ficar em pedaços? 

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

a concha e o mar

a coragem é sobretudo
o que não digo 
o lapso do verbo 

a prudência 
ao colocar o poema 
em seu lugar

abordar mais alto 
as coisas que não diria
em seu ouvido 

o oceano quieto 
ao lado de uma concha: 
a firmeza de ecoar em seu interior

através de um ruído 

domingo, 13 de dezembro de 2020

à luz do lampião 
nós somos dois felinos
de unhas enganchadas 

posando 

para os bichos velozes da noite 

sábado, 12 de dezembro de 2020

poder partir sem despedir

posso te escrever uma poesia 
com a bruta carícia do mundo 
questionar sobre a delicadeza 
ou o que fizemos dela 

nós os apedrejados 
pela própria leveza 

poderia te dizer sobre escrever o poema
ser mais simples do que pagar uma dívida 
que não nos esqueçamos: 

ainda somos devedores das palavras 

ainda não te escrevi um poema
isto o que estou a fazer é juras 
o gesto do mundo é mais injusto 

nos incobrindo
nos descobrindo 

nós as malas vazias dentro do porta malas 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

nesta manhã não sou pássaro

tem o peso dum tanque 
de roupas molhadas 
desbotando
o espírito 

os canhões enferrujados 
partem; 
debaixo do mar 
a terra seca

o rosto 
dorme à dureza 
dum algodão 

o tempo entrou
sinto 
no rastro 
dos astros 

atento aos buracos 
posso assistir à natureza 
a ponta rígida 
da língua 

por esta brecha 
o beiço banhado; 
alçar pegadas  

os beijadores
os pássaros 
das flores úmidas 

mas nesta manhã 
chego a ser 
ainda 
um chão 
que não recebeu arado; 

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

o que tenho a te oferecer são as cinzas e as cicatrizes

posso escutar os latidos 
do seu coração

o bairro cresce 
me movo rente à lentidão dos caracóis

sua língua fala: 
me diz em segredo  

ainda não sei se do céu 
alcanço a sua nuca

o corpo dentro do seu  
ou nós onde caberíamos 

aviso ter hora
o amor é um beco sem saída 


domingo, 6 de dezembro de 2020

a ferida da noite 
matituna 
no corte/recorte do rosto

ao longo da faixa; do sopro; do dia 

a retina prismada colada 
à monocelha
o sono atrasado 

somos as cascas
presas ao corpo

não cicatrizadas 

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

a solidão não tem nome
mas lambe 
pelas margens 
enfia os dedos 

já a minha língua
se enrola 
feito um trapo retorcido
envolto em tua cintura 

ainda a mesma carne 
o corpo a corroer 
ensimesmado 
o gesto pasmo

somos à luz
do silêncio comovido 
a estadia do verbo impronunciável 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Gioconda

Gioconda 
nunca exibiu os dentes 
se ameaçada 
finca as suas presas com os olhos

engole comprimidos 
de boca fechada 
vela o segredo; a dolorosa 

seu sorriso  
aos curiosos se mostra 
como chorar ao lado de um quadro 

quero-quero

hei de falar sob o corpo-vertigem
até sobrar sede e o pigarro suturar 
o ato da pronúncia abrupta 

hei de gesticular frente ao delírio
oscilando entre a ficção e o dia-dia 
como os pássaros equilibristas
fazem com os galhos contorcionistas 

mas diferente dos ninhos não descanso
dentro do seu corpo, alcanço as suas penas 
me debruço sobre o músculo do poema