quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

baixo Gávea

sete anos de azar
tenho colocado
a culpa da minha
falta de amar em cima
do espelhinho quebrado dentro da bolsa

ou será que esqueci de beber depois de brindar? 

a rua não se modificou
desde que a minha solidão criou nome 

esqueci o casaco no bar da Gávea
mas ainda não saí da Gávea
eu acho que esqueci
muitas coisas

a roupa para lavar
e o coração de molho
daqui do alto dessa pedra eu vejo o amor acenar 
 
9 nov 2014 

Um copo de mágoa

eu vou te ferir com palavras
e você vai me magoar com atitudes
o sol crescerá no topo da cabeça
e as bebidas consumidas – em dobro
não vão satisfazer a sede

mas a noite surgirá tão cruel 
que remediará as enfermidades
– o desgosto na goela
vai nos convidar à rua
sermos completamente imundas 
na cama no banco no papel em branco

os nervos os ossos os pés no asfalto
cantalorar o ódio e a fissura 
em nossas bocas o sabor
inútil de dia a dia o sol reapareceria 
ainda maior dia após dia

o mundo terá de assistir calado
ao suor envernizado desfilando
pelos corpos em fúria um copo
de mágoa uma gota do teu perdão 

21 Jan 2016

Meio-fio

esperei a chuva anunciada às 19h
tamborilar a nossa trilha sonora na rua toda molhada
e te ver entre as bainhas das calças encharcadas
sorrindo com os olhos meio fechados meio me olhando

meio falando que o caos é alinhado
assim grudado à minha boca

rascunhamos a alvorada
eu ainda espero a gota d'água
vômitos dos bueiros e os ratos enfileirados
as cores embaralhadas dos guarda-chuva

o barulho da rua gritando nossos sobrenomes
empilho as bitucas

meu cabelo em transe com seu travesseiro
e os olhos assim meio exatos meio ordinários
tumultuam o silêncio úmido que há em mim

12 Set 2015 

o canal do centro da cidade

busco retratar a solidão
em versos livres, aquela 
que se vê no rosto
de uma fotografia invertida 
de um canal cortando a cidade 

retrato o meu rosto invertido
no centro da cidade
cortando a fotografia
de um verso 

o seu rosto investido no meio
do meu centro entrecortado
dentro de um retrato, livro-me
da cidade, encontro a solidão 

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Biografia: Gyzelle Góes é poeta, professora, pesquisadora, capista e mestranda em Literatura, Cultura e Contemporaneidade na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), tendo sido contemplada com a bolsa FAPERJ nota 10. Pesquisadora de arquivos pessoais de escritores, em 2020 foi contemplada com a bolsa de Pesquisa de Conhecimento Técnico e Científico na Área da Cultura pela Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), onde teve contato com os acervos dos autores Foed Castro Chamma, Sebastião Uchoa Leite e Walmir Ayala. Atualmente, ingressou no doutorado da PUC-Rio com um projeto em torno de diários dos arquivos pessoais salvaguardados pelo Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB). Publicou duas obras poéticas: O que fizemos das nossas delicadezas (Ed. Folheando, 2021), que está em sua segunda edição, Amante (Ed. Urutau, 2019). A poeta carioca se formou em Letras-Licenciatura pela PUC-Rio em 2019.

Mediterrâneo


I
às noites, 
estiro o teu nome 
no sal do mediterrâneo

aos pés de uma ternura de pólvora. 

II
espanta-me que as retinas 
das constelações estejam tão discretas 
diante da festa que faz o teu coração,

cismo que o trovão 
possa ferir o teu sono de pedra. 

III
às manhãs, 
estendo o teu nome
no néctar das minhas quimeras

aos pés de uma rudeza de pétala. 

sobre as delicadezas

escrever um poema 
que não discuta o amor

mas a sombra partilhada dele. 

queria solicitar um instante 
de mútuo silêncio
emudecida de olhos. 

ocorre que o coração –
ouro, orquídea, sol – 

não fragiliza a face da boca 
aos pés deste brilho fosco. 

um poema 
sobre o amor 
nunca seria o meu forte. 

domingo, 21 de janeiro de 2024

quadrilátero

há um quadrilátero da tristeza
entre as dobradiças do teu rosto,
 
ao debater-se à porta
você a mim questiona

existe porta? 
não há, como vês 

mas se reparares, talvez
seja o buraco da fechadura

aquilo, o que afinal procuras? 

céu da língua

dai-me uma solidão 
mais lúcida – este é meu véu 

pois, veja bem, o céu 
me enviou uma estrela
e eu a pus debaixo da língua 

ouço-te, noite 
e me encaro no espelho
oval de um supermercado 

vislumbro-te, questiono
onde será que você 
encontrou o teu sorriso?

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

visão de mundo

morreremos, é certo,
mas sob um céu desses
neblina cigarro e sol de setenta, 
piscinão bossa-pagode
sauna e o chopp zero-graus. 

quem poderia prever 
ou até mesmo imaginar 
que uma mosca piscou 
para mim por debaixo da mesa? 

todos os que sentam ao meu lado
acreditam que eu perdi alguma coisa,
mas voce acredita que eu, sentada 
neste banco de botequim 
o que procuro é aquilo –
o que ainda não tem olhos. 

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

corrente

o rosa do céu foi embora
as nuvens, para onde vão?
olho para essa gota que escorre
das minhas pernas,

confundo as águas, 
parece que chorei antes
de nascer 

mas quando ao mundo
vim, havia algo de líquido
que o próprio tempo
não se ocupou 
em secar 

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

08/02/1993

Caro Sebastião,

Revisito inúmeras vezes a capa de A ficção vida. O teu trânsito, tua cidade, sigo de viés os teus passos e o dos transeuntes. À paisana, averiguo a paisagem. A paisagem que você criou em mim e na minha cidade. A poesia. Para onde vão os apressados de malas debaixo do braço ou os pombos? Também passo a toda a vela, acesa. Transito pelas luzes em p&b. Você transita pela minha linguagem. Nós, no fim e no início do século. O que nos espreita, a poesia – se não o poema que nos atropela? Deleito-me pelas tuas travessas. 

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

mãos e armas

resguardar nas dobras das mãos
o cheiro orfão da violência, 
antes da meia-noite, escuro, 
escuto o coro dos eufóricos 
pela virada do século.

os santos e os vândalos 
ainda que mudos nos espreitam
com réstias de pólvoras nos cantos
das bocas.

repleto de uma mágoa ainda não 
localizada – não sei se esconde 
no meu bolso ou no meu umbigo – 

agarrado pelo pescoço estouro 
uma garrafa de champanhe
da pior qualidade, 
espumo o meu rosto. 
as nossas mãos são armas. 

dois mil e vinte e quatro

é novo ano. ao acaso, nada. 
sinto como se devesse projetar
uma – infalível – revolução
na minha vida, 

acho que toda a empolgação
do meu mundo teve o seu desterro. 
encerrei (selei) o meu destino. 

espio-me a rastejar pelas margens
untuosas dos meus nervos, 
estou por um fio, por um lance 
de dardos.

à disposição dos futuros 
e inúteis sucessos & fracassos, 
abdiquei de fugir, sou hoje a lebre 
a contemplar o machado. 

de olhos arregalados, pouso 
a mão sob o para-brisas, 
o vôo do coiote tão circular me fita.