quinta-feira, 1 de maio de 2014
Já passou da hora de ser feliz
Estou exausta, Ana. Se você pudesse medir com uma fita o tamanho da minha angústia, faltaria fita. É tão desagradável estar a reclamar tanto da vida, a gratidão é surrada, é tão engraçada a forma como me acham feliz. Tão absurda! Trague-me as ameixas secas que estão a preço de ouro, mais caras do que as novas e viçosas, mais sofridas e desesperançosas. Não saia, Ana! Deixe eu lhe contar como é difícil carregar o peso de não poder errar, esse exemplo falso e vítreo que me obrigam a ser, como apodreço aqui dentro desse quarto rico. Não caibo aqui, Ana, pressuponho que você, como os outros, acham que sou ingrata e dramática. Não, não posso estar a lamentar já que tenho tudo, né? Oh, eu só queria a felicidade roubada ainda no ventre de uma mãe desconhecida, quando fui adotada esqueceram de também comprar o meu sorriso, o dinheiro não compra tudo, Ana, um dia você me dará razão. E essas suas olheiras? Amanhã não precisa vir. Amanhã eu quero chorar sozinha. Você acha que eu gosto de ser assim? Apesar desses olhos de verniz, tenho um coração selvagem e impróprio, pronto para amar e padecer. Por que esse espanto? Queira não zombar de mim, Ana, a solidão já judiou demais dos meus feriados, amanhã eu quero fugir para o circo da cidade e virar trapezista, sobreviver de expressas ilusões e quem sabe eu consiga ser feliz. Quem sabe por travessura do destino eu encontre de graça a tal felicidade que me foi furtada e deixe de fazer tantos lamentos pois já passou das seis e o seu expediente terminou outra vez. O trem mal chega e já vai partir. Não venha amanhã, Ana, fique em casa cuidando do seu medo idiota de ser feliz enquanto come as ameixas frescas colhidas da árvore do seu quintal ensolarado e florido, mas por gentileza volte no domingo.
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Nós carregamos essa responsabilidade de ser feliz desde sempre, o Abujamra diz que a felicidade é uma ideia velha, eu acho que a felicidade permanente é uma ideia velha, existem momentos felizes e esses nós levamos conosco.
ResponderExcluirBeijos
Você escreve tão bem.
ResponderExcluirBom dia Gyzelle.. falta fita pra medir as fracassos meus tb com este sentimento... mas ainda sonho que o amor virá.. nunca é tarde.. abraços e um lindo dia
ResponderExcluirGyzelle, oi! Reclamar é preciso. Viver? Viver não. Viver não é preciso. Enquanto uns se escondem nas cores dos frutos das flores, outros mergulham nas sombras em busca da felicidade fugidia. Blogueira, convido para que leia e comente “THE SMITHS, O CONTO” em meu http://jefhcardoso.blogspot.com
ResponderExcluirfine della fantasia - cesare pavese [trans. ramonlvdiaz - excerto]
ResponderExcluirtemos apenas uma virtude: de estar
em cada dia anterior a terra sob
um céu de silêncio que saiba surgir.
se espanta quando o amanhecer fadiga;
através dos círculos a obra se expede.
mas nós vivemos apenas para estremecer
o labor avante que a terra acorda só uma vez.
acontece por vezes. então aquiesce ao redor.
[original]
Non abbiamo che questa virtù: cominciare
ogni giorno la vita davanti alla terra,
sotto un cielo che tace attendendo un risveglio.
Si stupisce qualcuno che l'alba sia tanta fatica;
di risveglio in risveglio un lavoro è compiuto.
Ma viviamo soltanto per dare in un brivido
al lavoro futuro e svegliare una volta la terra.
E talvolta ci accade. Poi torna a tacere con noi.
Mais um texto maravilhoso. Felicidade, o que é isso de felicidade. Nem todas as pessoas tristes são forçosamente infelizes.
ResponderExcluirParabéns, Gyzelle, teu talento é enorme!
xx
Que teatral isso! Deu vontade de assistir à encenação desse texto!
ResponderExcluir;)
''Apesar desses olhos de verniz, tenho um coração selvagem e impróprio, pronto para amar e padecer.''
ResponderExcluirGenial.
Que bom que vocês gostavam, o comentário de cada um é particularmente especial para mim, essa é a melhor parte de qualquer prosa. Essa tal Ana ao meu ver é a própria personagem, ela dialoga com seus próprios medos, ela só precisa da felicidade, mas já passou da hora, das seis.
ResponderExcluirGostaram****
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