quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Clandestino

Quando morri pela primeira vez deixei para trás umas esperanças falidas que conduzi descalça por anos, aquele sorriso distraído foi para o caixão e herdei uma expressão de desdém, lágrimas que outrora caiam com facilidade secaram igual a chão de deserto arrasado pelo verão. Restou uma vontade de escrever que vem para ferir e eu sou escrava desse desejo insólido. Na segunda morte os pedaços golpeados do que fui estavam jogados numa pensão imunda da rua Augusta, a fúria coloriu meus olhos de vermelho. Eu matei um batalhão de homens valentes e escarrei na chaga do amor, sem perdões contei calunias enquanto construía um mural de inimigos fantasmas. Foi preciso coragem para escrever sobre o terceiro falecimento, o funeral estava vazio e o céu não chorou aquela perda. Os vermes não vieram me visitar e meu corpo não entrou em decomposição pois a natureza se esqueceu que eu tinha morrido. Minha morte não entrou para a história, meus livros foram queimados junto às cartas de infância e o violão de madeira maciça vendido por alguns centavos. Os amores se refizeram e não choveu por dias.

Fui ignorada pelo mundo e escrevo essas linhas tristes pois até o Diabo esqueceu de me buscar, só o coração de vidro não esquece de exibir que está estrangulado.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Rio de Fevereiro

Eu que tanto adulei o verão tô agora reclamando para as paredes desse quarto-e-sala enquanto vejo você tomar esses banhos rapidinhos e voltar molhado pra cama. Tá bem Moreno, você sai nesse sol carioca para uma caminhada e quando volta faz nescau com gelo para compensar a próxima partida, eu aceito teu sangue da gema. Comprei um guarda chuva preto na última tempestade repentina, te ouvi dizendo que isso daria azar e foi isso que aconteceu com minha felicidade, você sempre teve essa alma de cigano barato e eu odeio quando joga com a minha sorte. O Cristo tá com os braços abertos bem em frente à minha janela de azulejos, você fuma curvado enquanto olha para ele e faz seus diálogos boêmios pensando ser teu amigo do peito. Faz tuas rimas quando tá dobrando os lençóis suados e me desfaz a hora que quer. Se pergunto sobre nosso romance a resposta é um sorriso de lado, uma mordida no ombro e um beijo mudo com cheiro de cerveja, corre a tempo de não me ouvir repetir e só volta quando acha que eu esqueci com chocolate comprado na banca ao lado do senhor Adriano. Cara, esses chocolates chegam derretidos e sujam as minhas mãos igual a você. Eu tô suja, quente, suada e cansada de sua malandragem, mas quando ouço teus passos no corredor ajeito os cabelos e passo aquele batom vermelho que te excita. Quando o sol dá trégua o céu começa a escurecer, você acende meu calor junto com as luzes da avenida, elogia uma parte do meu corpo como se eu fosse a única e se esquiva do meu quarto para algum bar da Lapa ou qualquer saia com pernas. Eu contei tuas formas devassas de me ganhar, somam até agora 251 delas, número de vezes que entrou nesse apartamento. A culpa é minha de ser tão vulgar e permitir que um cara desses tenha a cópia da minha chave, mas você desvendou todos os meus segredos.

Passei na Fonte da Saudade, lembrei da sua carioquice quando vi selos da calçada dançante de Copacabana, comprei outro batom de cor quente e ouvi o Cristo zombar de mim, Moreno, carnaval tá chegando. 

sábado, 25 de janeiro de 2014

23:00

Poeta
Quero te mostrar as estrelas
recitando poesias de Machado
só para ver seus lábios dançarem
versos junto aos meus

Essa noite eu comprei vinho de safra antiga
pois você sabe da minha melancolia
e dos discos guardados
de franceses antiquados

Ah poeta...
Se você soubesse dos desenhos que tracei
sobre o vazio obtuso
desse seu rosto pálido que combina
com a alvura do quadro,
diria que eu sou louca por desenhos
(e eu sou por você...)

Eu queria poder cantar sobre nós
mas espero que você entenda a minha timidez
e as vezes em que evitei entender teus olhos
que hipnotizam numa frequência suburbana

Pobre poeta
Você deveria saber que me deixou esperando
outra vez naquela lanchonete rosa
ou que eu não seria capaz de te deixar
mas você não sabe
nem as horas

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Fuga da sanidade

Fuja junto aos ratos deste porão mal assombrado
subitamente se puder
leve sua covardia
e me deixe com a saudade maldita

Case-se com aquela mulher das flores
e não acenda a luz do quarto
se abrigue longe dessa minha escuridão
no leito de um amor sadio

Na volta para o amanhecer
colha as rosas que não tiverem espinhos
pois o sangue que verter de seus dedos
será usado contra você

Espere pois o ódio que escorre dos meus olhos
arrebentará sua janela blindada
e sugará sua beleza com a mesma violência
do meu amor

Repudie essa paixão doente
que descarta sua euforia e planos dementes
cale essa sua boca de sonhos
e salve-se desse suicido

Somos eu e você
Envoltos nesse sono de trevas
e se decidir enfim ficar
para a morte vou te acordar

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

E a cerveja de ontem?

Esquece aquela poesia que te fiz embriagada, os sonhos que embrulhei com fitas de cetim e joguei no lixo do próximo quarteirão. Você vive tão sem endereço que nunca consegui realmente te achar, não me dê seu novo número porque eu não vou ligar ou te mandar uma mensagem medíocre dizendo que senti saudade do que fomos, um dia isso irá amenizar e as marcas servirão de tatuagem. O chá de maçã foi sobrecarregado de açúcar e o que falar do meu amor? O meu amor me consumiu. Rasgou minhas roupas, sujou minhas botas, esgotou a conta corrente, esvaziou a despensa. Eu consultei uma cartomante e ela falou do meu futuro falido como quem chupa bala de hortelã, disse que você vai voltar quando meu coração estiver frio, que minha alma estava tão ardida quanto a boca dela e me recomendou um analista. Voltei pra lavar as louças que você sujou. Achei várias feridas empoeiradas embaixo do tapete indiano e debochei do nosso amor descartável, do anel de aço, dos orgasmos fingidos. Lembrei que você vai voltar depois de ter achado o mundo muito chato e aquela mulher barata demais, vai querer fazer parte de minhas paranoias mas eu não serei a mesma.

Abri o congelador e peguei aquela cerveja que você esqueceu,
Estava congelada
Essa cerveja sou eu amanhã.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Avelã doce

Cansei de escrever sobre o vazio e resolvi poetizar sobre seus olhos. Escondido atrás de sua íris existe uma galáxia inteira, cheia de profundidade fria, onde mergulhei nas vezes em que me perdi tão calculadamente e eu às vezes acho que deixei alguns pedaços do que sou dentro deles. Estou terrivelmente incompleto e tento decifrar o mapa de seu olhar em busca do que até hoje nunca encontrei, mas este é um labirinto perverso que anestesia minhas chances de lucidez. Se for para dizer qual é a cor de seus olhos, falharei mil vezes pois nunca descreveria com exatidão a imensidade de boniteza que neles habita, acredito que foram pintados inspirados na cor do sol refletido em uma avelã novinha e fresca, ainda pendurada numa árvore torta, cintilante de tanta vaidade. Eu me pergunto porque esses olhos choram com tamanha frequência, eles que são amplos se tornam menores quando você está triste e entristecem também, mudam de aspecto, isolam-se na angústia que te vejo guardar como se fosse um amuleto. Cultiva as coisas que não te fazem bem e essa é razão da sua insensatez, sempre desorientada caminhando a passos arrastados por entre ruas cinzentas, sem saber o que esperar da vida e me olha com desdém de índia, evitando esse rapaz vazio como o deserto. Sorri, mascara a solidão e se diz feliz quando o sol queima suas costas nuas, quem sabe um dia eu me torne quente o bastante para aquecê-la, queimá-la e me derreter para fundir minha alma nesse corpo dourado e enfim eu consiga tomar esses olhos pra mim, roubados e quentes.