domingo, 21 de janeiro de 2024

quadrilátero

há um quadrilátero da tristeza
entre as dobradiças do teu rosto,
 
ao debater-se à porta
você a mim questiona

existe porta? 
não há, como vês 

mas se reparares, talvez
seja o buraco da fechadura

aquilo, o que afinal procuras? 

céu da língua

dai-me uma solidão 
mais lúcida – este é meu véu 

pois, veja bem, o céu 
me enviou uma estrela
e eu a pus debaixo da língua 

ouço-te, noite 
e me encaro no espelho
oval de um supermercado 

vislumbro-te, questiono
onde será que você 
encontrou o teu sorriso?

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

visão de mundo

morreremos, é certo,
mas sob um céu desses
neblina cigarro e sol de setenta, 
piscinão bossa-pagode
sauna e o chopp zero-graus. 

quem poderia prever 
ou até mesmo imaginar 
que uma mosca piscou 
para mim por debaixo da mesa? 

todos os que sentam ao meu lado
acreditam que eu perdi alguma coisa,
mas voce acredita que eu, sentada 
neste banco de botequim 
o que procuro é aquilo –
o que ainda não tem olhos. 

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

corrente

o rosa do céu foi embora
as nuvens, para onde vão?
olho para essa gota que escorre
das minhas pernas,

confundo as águas, 
parece que chorei antes
de nascer 

mas quando ao mundo
vim, havia algo de líquido
que o próprio tempo
não se ocupou 
em secar 

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

08/02/1993

Caro Sebastião,

Revisito inúmeras vezes a capa de A ficção vida. O teu trânsito, tua cidade, sigo de viés os teus passos e o dos transeuntes. À paisana, averiguo a paisagem. A paisagem que você criou em mim e na minha cidade. A poesia. Para onde vão os apressados de malas debaixo do braço ou os pombos? Também passo a toda a vela, acesa. Transito pelas luzes em p&b. Você transita pela minha linguagem. Nós, no fim e no início do século. O que nos espreita, a poesia – se não o poema que nos atropela? Deleito-me pelas tuas travessas. 

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

mãos e armas

resguardar nas dobras das mãos
o cheiro orfão da violência, 
antes da meia-noite, escuro, 
escuto o coro dos eufóricos 
pela virada do século.

os santos e os vândalos 
ainda que mudos nos espreitam
com réstias de pólvoras nos cantos
das bocas.

repleto de uma mágoa ainda não 
localizada – não sei se esconde 
no meu bolso ou no meu umbigo – 

agarrado pelo pescoço estouro 
uma garrafa de champanhe
da pior qualidade, 
espumo o meu rosto. 
as nossas mãos são armas. 

dois mil e vinte e quatro

é novo ano. ao acaso, nada. 
sinto como se devesse projetar
uma – infalível – revolução
na minha vida, 

acho que toda a empolgação
do meu mundo teve o seu desterro. 
encerrei (selei) o meu destino. 

espio-me a rastejar pelas margens
untuosas dos meus nervos, 
estou por um fio, por um lance 
de dardos.

à disposição dos futuros 
e inúteis sucessos & fracassos, 
abdiquei de fugir, sou hoje a lebre 
a contemplar o machado. 

de olhos arregalados, pouso 
a mão sob o para-brisas, 
o vôo do coiote tão circular me fita.