terça-feira, 25 de abril de 2023

anjo sem órgãos

i

me dói as tripas,
como me dói a vida, meu deus! 
recordo a ti ninando o meu berço,
clamando por leite materno 
eu te peço o peito para me encolher 
sem queixas, ausente disto viscoso 
o que vibra das minhas vísceras.

eu quero um colo, meu deus. 
eu que me lembro de ti 
nesta hora sem data, sem hora
me converto em tuas mãos 
um caracol
sem cobertas,
apenas um último sono. 

ii

apenas um último sono
e eu seria a menor mulher dentro 
de uma cama, sem choro
sem queixas, apenas um sono
daqueles que te chamam 
à meia-hora da hora sem fim, 
quente como devem ser as crianças 
puras, como me dói e se eu pudesse 
ai, se eu pudesse! eu te entregaria 
o meu corpo ainda úmida. 

ai, se tu me entregasse o meu corpo 
de volta! sem órgãos, sem lenço 
apenas as tuas mãos mudas,
rubras, cobertas rugas e versos. 

quinta-feira, 20 de abril de 2023

deste eu sem mim

o que você espera desta hora vazia
deste cinzeiro cinza, transparente
o meu rosto tão cego a tarde

ou melhor, o que você espera, ainda
nesta sala de quebra-cabeças
quadros revirados antiquados 

o que você espera deste eu sem mim? 

domingo, 16 de abril de 2023

Mr. Dylan

porventura fosse eu uma máquina 
de escrever delírio. 

delícias, tormentos 
d'um tropical inventivismo lírico. 

embora me sinta contigo como se 
eu fosse uma máquina feliz 
na estante, delirante, rio. 

quarta-feira, 5 de abril de 2023

a distância entre dois corpos e o ofício

eu e uma mesa 
de mogno sem fundo 
repleta dos papéis 
enquadrados à mão 

encarquilho-me neste ofício 
da escrita e confesso que coro -
tenho desejos profícuos

você na escrivaninha 
ou no sofá com fundo
refletido pelos papéis
desenquadrados ao colo
envoltos aos pelos 

a gente se olha, desiste do ofício 
e se espelha sobre uma nova posição 
entre dois corpos no cio 

domingo, 2 de abril de 2023

o mar ausente

me entristece, não de uma tristeza lúcida, 
embora ela seja visivelmente justa, 
que nos tenha sido arrancada 
a infância

encaixo-a (a infância, a tristeza) 
nos poemas dominicais, 
me encolho no ventre da tarde, 
penso com os meus lençóis 
que os Deuses
nos abandonaram no berço 
dentro de uma banheira sem fundo

Rosa especularia que o rio tem 
três margens, saibamos
afogando que o mar não está para os 
peixes como está para os cardumes

e que por mais que a gente se debata

é só através do choro (da lágrima, da tristeza)
e então nós nos afogamos 
com a delicadeza daqueles 
que supõe que lhes foi 
arrancada 
a única coisa

salva desta infância, 
onde nos teria sido permitido 
chorar sem os olhos, sem fundo 
o mar ausente de animais marinhos