terça-feira, 30 de novembro de 2021

cúmplices

é tempo de você
me furtar o juízo; a fala

nós que roubamos
os relógios banhados de prata 

(pairados detrás das vidraças) 

é tempo meu amor
de cometermos aquilo 
o que o amor não contou 

talismã

queria dar a ti 
um talismã 
um poema 
da espessura
do Sol 

viajar contigo 
de mãos úmidas 
como se 
me confiasses 
o calor das paisagens 

fazer uma canção 
que te fizesse 
amigo 
e amante 
e boca entumecida 

sangrar o que há pulso 
o que seja apenas 
um sinal 
uma palavra 

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

arrozes

quero te provar
pago os pecados
ajoelho no arroz
e o cozinho em fogo baixo

alinhados 
nós e os arrozes 
somos doces
mas nunca fomos

mais do que duas fontes

de alimento 
debaixo da terra
pedindo á deus
que nos perdoe 

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

fonte da Saudade

lançaram novas luzes 
nos fundos meu bairro
pensei ter te avistado 
com um livreto úmido 
debaixo do suvaco 
sob a sombra de uma jaca 
você que ronca enquanto
viaja à terra dos pombos
de lá avista uma silhueta 
de braços arreganhados
você me diz olha eu te vejo
desta janela rasgada 
eu não sei a que horas
digo que estou com vontade
de te cozinhar feijão
quando você me vê 
mastigar cebolas roxas 
você que não é como as cebolas
nem os meus olhos sabem
qual a hora de dizer 
você não dorme ?
no canto do meu bairro
há um refrão que eu te dedico 

eu quero te escrever em meus papéis

você que mais parece 
um dos meus poemas 
me encara com um gesto
no olho
eu me olho
através das tuas lentes
me questiono 
com que rosto
eu digo que te leio 

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

desgraçados

existem os escritores
que morreram/e ainda morrem
na sarjeta

meus caros, 

com uma mão na frente
à cara moribunda 
e a outra no rabo

existem aqueles que morrerão 
e não teremos notícia
nem uma notinha
para contar história

existem os esquisitos

sobre esses me atrevo a falar
que não passam de indivíduos
sem relógio e pouca intuição

e existem os escritos
aqueles que não precisariam 
existir se não fossem os escritores

grandes perpetuadores 
meu caros, 

das des
graças 

sábado, 13 de novembro de 2021

Castigo

assim como Adélia 
protestava, as vezes Deus me tira a poesia
mas e eu que nunca fui de me atraver 
com os mandamentos?
sei que há uma palavra, seja ela Deus
ou Paraíso
que me pega é pelos braços 

a língua dentro do ouvido

retorno à euforia
te sentar à casa

salvar da malícia asperezas 
a infalível forma dos tímpanos 

eu queria te sussurrar perigos 
que você ignora 
beija-me

descubra o porquê
do meu silêncio 

te direi que o nosso tempo 
é o zumbido 

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

no bico dos pássaros

eu vi o sol 

no verso do teu lábio


o inverno 

no bico do teu peito


encarei a face da carícia, 


avistei o pássaro 

dependurado 

no teu colar


aninhado 

ao meu semblante, 


olhemos para o firmamento 

atento às nossas asas 

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

as árvores crescem sem avisar

e eu que realmente
só queria esquecer
e se 

dormíssemos
agarrados 
tão quais
dois coalas no cio 

acordei com sede e 
gosto do seu cachimbo na boca

você que reparou na beleza
ordinária dos meus pés
e eu que mal sei
expressar outra reação
além de 
correr

para o teu mundo
ainda contado nos dias
ainda atrasado
porque 
não te conheci
em outra vida 

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

fruta sedosa

o que sei de ti 
é que tens um coração 
gosto de polpa bicada 

que és de longe sedosa

que a tua casca exposta 
brilha feito os olhos 
dos bichos ao anoitecer 

e que por fora
de ti envolta 
as pássaros brincam 
de se esconder 

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

herdei a guerra e a paz 
pouco sou dentro do mundo
mas brevemente me sinto parte 
das decepções que assisti 
em tela plana o ruído 
do jogo português 

uso um cinto que me aperta 
o couro do coração
reaprendo a respirar 
por puro instinto 
me lançaram aos besouros 

me tira a atenção o narrador 
não me importa quantos pontos 
marcaram aqueles que me arracaram
do conforto do ventre 
ainda é quente 

e eu que não encontro lugar aqui 
fora além do alçapão 

congelamento

me tiraram até a vontade de escrever um poema, eu que não tive vontade de retornar, não tive ânsia de chorar, não tive vontade.
o que resta para aqueles que perderam até tudo? 
.

o que será de alguém que se chama poeta se não há poemas? e nem vontade? 

não tive escolhas, mas sei o que devo fazer 
.

acendo um cigarro, penso que ainda me resta o pensamento - inútil. o que devo agarrar com as mãos no gelo? 
.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

gravidade

encontro um astro
no teu umbigo

atravesso 
a eternidade
com a ponta da língua 
inteiriça no teu ouvido

digo meu amor
não descubra a distância

capaz de nunca mais
sentirmos 
a gravidade 
da situação

o amor fora de órbita

ou o peso das mãos
o adeus nunca foi
tão longo 

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

mitológica

marcela, 
tateio o teu nome pelo cheiro
finjo sono. padeço etérea 
em teu seio montanhoso. 

às manhãs, nuvens 
dormem flutuantes. 
à tua imagem 
se assemelham 
as tempestades. 

marcela,
titubeio à beirada
do teu nome. 
como quem escala 
o morro antes de sísifo, 
teu nome na boca carrego. 

rogo à Deusa despencar 
rente aos teus lábios, 
pétala morna. 
paraíso, linguagem
infinita. 

incontinente

não restar nenhuma palavra
para contar a história da nossa fuga 

você que já não estimo 
alívio ao desespero vão 

há quem diga que a carência 
é um estado

eu diria que formou
um continente 

na palma das minhas mãos