domingo, 30 de maio de 2021

receptáculo

guardo 
o suor 
debaixo 
do peito

à paisana
a terra 
afunda 

no eixo 
das palavras
-chave 

assisto 
à queda 
dos peitos

guardo 
o meu coração 
em um continente 
frágil 

terça-feira, 25 de maio de 2021

da partida o gesto de repartir

I. 

tenho as mãos
pesadas 
no colo 
do umbigo

nada mais resisto 
além 
de afagar 
-te 

II. 

há quem perceba 
que nascer 
além 
de abrir 
os olhos 
e de cortar 
laços 

seja descruzar 
os braços
na hora 
do adeus

sexta-feira, 21 de maio de 2021

ama

ama primeiro 
o que eu nunca fui 
ancorada na alcova  
à espera do juízo 
e o teu perplexo 

antes de amar 
apenas que me vista 
no corpo do poema 
a parte do corpo 
sensibilizada 

antes
ama a vontade 
embora
seja só 
o desejo de ir 

ser a mulher que você nunca amaria 

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Regresso ao estado originário da minha fantasia

Percorro o jornal da manhã. Vejo o rosto do passado, do meu primeiro carnaval, nos rostos daquelas figuras das páginas. Embora diferente das cores e das serpentinas agitadas, são as pessoas - mascaradas - que vagam pelas cinzas da cidade pasma. Desejo o sítio por mim criado no tempo em que com os olhos escrevia marchinhas para o mundo, lugar no qual eu enterrei a minha bicicleta e o meu semblante solto. Atualmente pedalo com os dedos nos papéis e espero com cuidado a liberdade, essa danada que se despediu com o primeiro sorriso pela manhã. Hoje, todavia, a vontade de sair se manifesta. Marcho com os dedos, inquieta a minha crônica desfila em festa, lá no fundo alvoroçado da memória a folia regressa e me sorri: o carnaval se faz é na rua do corpo das palavras.

domingo, 16 de maio de 2021

derramar a si

bom 
é se despir 
da espera 
enquanto 
aguardo 
o fim do fim 

e a aquidez 
da paixão que você 
me prometeu 
na imprudência 

tomo mais um drink 
de água ardente 
busco, além do seu reflexo, 
o que escorre das auroras 

bom é se despedir do que não despenca 

quinta-feira, 13 de maio de 2021


teus olhos são duas luas
despojadas no rio frágil da memória 

ainda que eu falasse de amor
ainda não abarcaria a noite 
revelada em nossas sombras 
o que trago nas mãos é o susto 
atravesso o sorriso 
de uma desconhecida palavra,  
obra cujas mulheres 
- em construção -
saíram para o almoço, 
uma placa na veia da cidade 
entre dois grandes blocos de vidas
sucumbidas

o medo nunca foi apenas o estalo 
por dentro ele aparece cheio de dentes,
rosna e aponta 
- ainda que os umbigos fossem todos para
dentro - 
mandaram que nós trancássemos
as bocas, mas ainda há uma diminuta 
ferida indolor 

se enfiarmos o dedo é capaz de abrí-las 

quarta-feira, 12 de maio de 2021

náufragos

a minha mãe tem os olhos de costurar 
oceanos e navios 

e eu, ainda tão verde no ramo 
tenho é os olhos de mastigar maçãs: 

devoro tudo a meu gosto

e me atrevo, suspensa 
a fazer afundar embarcações 

sábado, 8 de maio de 2021

vertiginoso

o corte da vidraça vigia a tua silhueta 

suspeito do teu amor
quando me espia, 
fresta ímpar do poente unilateral 

te vejo despistando a sombra 

no tempo em que frequento 
morosa a despedida, 
dentro dela me comovo trêmula 
 
a carne o que é se não o vestígio 

segunda-feira, 3 de maio de 2021

pena

quando fui criança costumei a curiosa passar a mão pelas suavidades das coisas e s p a l h a das pelo mundo 

numa certa vez numa pracinha em Copacabana ao tropeçar na pena de um pombo cambaleante chupei a pena dele sem dó feito quando faço com a palavra até enxugá-la 

guardei o meu apetite para o verão desse amor tardio

após o ato cresceram três caroços no meu pescoço e eu me dei a sentir adoentar a euforia nessa época acostumei a dormir o silêncio das covas 

e foi quando tive de tomar leite de peito eu tinha acabado de secar todo o peito da minha mãe de angústia também 

depois os tempos avoavam mas a pracinha continua enferrujada ou seria avermelhada pela luz do dia das tardes ferrugena da infância? agora ela é mais vazia ou sem zelo sem minhas andanças 

talvez a rua esteja menos acarinhada agora eu só me afasto do mundo 

o peito foi ficando mais e mais seco cada vez e eu acho que o leite agora é do sabor da lágrima que eu não consegui evitar com a minha língua 

só o que mudou realmente é que ao invés de chupar a pena eu faço confusão entre as aves migratórias