quarta-feira, 28 de junho de 2023

ficção-morte

das vezes em que morri 
a morte de saudade foi a morte 
mais duradoura, o coração dentro 
de um tanque debaixo d'água.

houveram mortes catastróficas,
morri de esperança, quando se espera 
neve no deserto, dormi em pleno terminal
a espera do trem sob meu corpo. 

vocês aguardam que eu confesse 
que eu morri de amor, mas é nessa morte 
que me sinto viva, foi morrendo 
de amor que eu finalmente nasci. 

furta-me a cor do arco-íris

seus olhares 
continuam a encharcar 

as quinas 
das mesas 
dos butecos 
assim oblíqua 

se algum dia 
eu te encontrasse amor

sem pressa 
e garoa 
entre 
as retinas 

para ver o sol secar eu te convidaria

domingo, 25 de junho de 2023

nós e o fim de tarde

há dois dias esqueço de te escrever 
sinto uma melhora na viçosidade 
da minha pele, peguei 
uma gripe leve

visto que estamos no início do inverno 
coloquei para tocar Cássia na rádio 
do carro, tomei café 
da manhã à tarde

e me distrai de lembrar de você 
e tudo isso para dizer que eu já 
não te amo mais 

sábado, 17 de junho de 2023

Página F.

não posso anunciar o seu nome
mas fico a delirar qual seria 
a primeira palavra a escapar 
da minha boca depois do nosso beijo

na varanda solar ou debaixo 
de uma marquise ruída 
nós e o silêncio de um balão em junho 

seria a palavra inaugural para mim
eu renasceria depois de nós
nem mulher e nem poeta
seria uma boca beijada
depois um corpo

e talvez o projeto de um livro 

terça-feira, 13 de junho de 2023

dez e quarenta e oito

havia-me esquecido de ti, coração, 
até você chegar pelas dez quarenta e oito

pela rachadura eu te escuto 
arranhando o meu dia, 
lembra-me aquela música 
da sala de estar cheia de botões de rosas 

enviando-me uma mensagem 
de áudio com uma voz de arranhões 

parece que você está zangado comigo,

mas eu havia-me esquecido de contar 
o fato de que eu realmente havia-me 
esquecido de me apaixonar 

e eu nem quero lembrar-me mais disso  
até você chegar pelas dez e quarenta e oito 

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Diário I - O retorno do Arcanjo

Quarta-feira comecei a ler o quarto diário de Walmir Ayala, Sangue na Boca. Ayala, através das memórias cotidianas, me conta sobre um homem noturno, febril, quase infantil, não pela sua inocência, mas pelo modo cristalino como relata as suas experiências vermelhas como rosa em delírio. Meu coração fica a ponto de estourar quando os dias vão percorrendo o corpo do poeta, a escrita-carne. Este domínio da linguagem do memorialista é de estender os ossos, me tira do frio deste quase inverno. Fui à casa em Laranjeiras de André Seffrin, o guardião do arquivo de Walmir. A rua do André é íngreme e sinto que chego a tocar o céu subindo, tenho de apagar o cigarro no asfalto no meio do caminho, se não, não termino a caminhada. Na casa do André o cheiro de mata e de livros é como eucalipto para os meus pulmões, sinto como se abrisse um livro em uma casa isolada no campo. André me contou dos títulos dos diários de Walmir, Sangue na Boca porque é preciso ter sangue nos olhos, inclusive na boca, por onde escorrem as palavras. Além de fugir, o Arcanjo antes fez a descida. No caminho ao Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, um homem se lança da ponte. O carro atravessa o pedaço de asfalto intacto de sangue, antes dele escorrer. Assisto ao sangue. Sangue na boca. 

Cartas a Sebastião

Caro Sebastião,

Revisito a capa de A ficção vida. Você, poeta, nascido em Pernambuco de 1935, assume a sua relação com o Rio de Janeiro, cidade para onde se mudou em 1965 e morou até a sua morte. Transeuntes no centro da cidade do Rio, cobertos pelo sol dos dias, os corpos e suas miragens. O trânsito de pessoas, de automóveis, inundados pelo cenário das ruas: “Da Avenida Central / Este é o melhor / Dos mundos incompossíveis / Domingo 07.30 PM / Prédios Dormem / Passo a toda vela / Mas fico imóvel”. Há vida passando a toda a vela, quem dorme? São os prédios acesos no centro da cidade grande. “Dentro cutias corredoras/ Róem na relva / Deslizam furtivas mas / Não são ratos / Róem o tempo todo." Dentro do poema e da cidade - as cutias, que não são ratos, mas que roem, correm, deslizam, corroem, o tempo, a Vida.

terça-feira, 6 de junho de 2023

Cartas a Sebastião

Caro Sebastião,

Estive ansiosa para folhear os teus álbuns de fotografias, memórias fotográficas. As imagens dizem sobre aquilo que o tempo paralisou no instante de um instante de luz. Assim como a escrita, as fotos possuem linguagem, uma forma de dizer silenciosa, escura. E esse silêncio se estende sobre nós. No seu arquivo eu só encontrei cinco fotos, quatro delas três por quatro. É irônico, você concorda comigo? Você se revelando em 4 fotos 3x4. Relembro das suas cartas trocadas com a sua irmã Célia, ela dizia que você devia se soltar mais, descontrair, sair e deixar de ser tão retraído. Olho para a única foto da tua infância, diferente das fotografadas na fase adulta, você carrega no rosto um meio sorriso. Abraçado ao braço esquerdo, aparentemente se agarra a um ramo de flores, na mão direita um objeto não identificado, que talvez fosse um brinquedo, não, é um terço. A roupa formal, branca, nos convida à cena dos bastidores do seu batizado. Ao fundo um quintal, vazio, só você posicionado no meio do quintal da infância. De pés alinhados, o menino posa para foto, e os seus olhos – o único canto que não se deslocou.

                                                                               

                                

Lírica

nesta primeira hora da solidão
nós somos intrusas 
na casa do amor

o botão explodindo da tua camisa
transgride as malhas 
da linguagem 

todas as horas após
o nosso Deus anunciar o sono
eu já ansiava a invasão: 

de paraíso o teu estrondo à porta. 

quinta-feira, 1 de junho de 2023

poema oco

eu queria era criar uma margem
terceira em teus braços

entorno do sol de maio
dia 32

que fundássemos uma semana 
inteiriça de feriados cariocas 

(que dormissemos em ocas) e 
modernidades/pós e contras

fazer um poema sem forma
somente com a forma 

do teu jeito de ler o meu poema oco