quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

carne de escorpião

antes do veneno 
provaram a carne
do inofensivo escorpião 
aqui dentro 

este coração asqueroso 
devorando os olhos
pico a noite 

eu o bicho comestível
de corpo borrachudo 
incitando 

letal
previsível
genuína  

paixão, 
o nome do filete escarlate 
peçonhento escorrendo pela boca 

sábado, 20 de fevereiro de 2021

línguagem II

se preciso digo sobre a vir -ada do ano 
ou do quarteirão que dei só para te filmar, 

esquece o tempo
ele tem passado 
e nos feito distância 
                   estranhamento) 

vejo os seus olhos bem loucos pedindo por nós, vejo os meus olhos bem loucos pedindo por nós, 

então, não são tantos quilômetros 
se os números 
e aliás 
as palavras são infinitas, 

imagina a borboleta vivendo em um dia 
desses o amor fantástico 
pousada 
em nossos ombros, 

teríamos de nos verbalizar
entre mais silêncio 

enquanto nos beijamos

ou a infinitude dos números 
- ou seja o tempo - 
em nossa boca 

varanda

é como se o antes 
tivesse nos modificado, 
as nossas falas 
são outras 
e outros são 
os nossos interesses

pode ser que ainda tenhamos 
algumas coisas 
em comum, 
eu olho para nossas mãos 
e percebo o quanto 
continuam inquietas 

eu vejo a nossa varanda 
e ela ainda reflete 
a luz do mundo 

turvo olhar

penso se posso suportar 
esta solidão
deste lugar na terra
tendo um coração tão delicado 

cavalgar a estreitar a rua
esta pedala atravessa o corpo - 
o meu desandado 

se o rosto ainda de lado
reage à contusão
do tempo
e das mãos
lentas dentro de um navio  

da longitude te vejo
ainda uma miragem
que flutua
sob as nadadeiras 

nada é sem eira
resta o pouco de vista 
encontrada em você

um mapa no meio do mundo
pedindo que eu siga 
embora não diga 
em qual direção 

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

feliz aniversário

abro a boca como um canivete 
que sai do bolso
 
essa feição de quem recebeu 
uma má notícia
no meio de uma festa 

onde todos esperavam 
que eu trouxesse o bolo

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

nuvem de pinga

o carnaval acorda
sob os seus pés 
você voa além da minha cabeça
despejando cachaça 
em busca do Sol

porque sempre há algo queimando

talvez pela nuvem de pinga 
que molhou as asas antes 
que buscasse abrigo
seu voo não pude vê-lo

mas ainda há sob os seus pés
o carnaval que precisou dormir 

mini bio

Gyzelle Almeida de Araújo Góes é poeta, carioca, nascida em 1994. Formou-se em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Atualmente pesquisadora do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB), trabalha com arquivos pessoais e poesia contemporânea. Publicou seu livro Amante pela editora Urutau, em 2019. Participou de exposições como o Poesia Agora, pela Caixa Cultural Rio de Janeiro, premiações como o VIII Prêmio Paulo Henriques Britto de Prosa e Poesia na PUC-Rio, possui poemas publicados por revistas, jornais eletrônicos: Plástico Bolha; Mallarmargens; Samizdat; Artefato Edições; Revista Toró...

sábado, 13 de fevereiro de 2021

resgata meu desejo último 
de te amar de repente
como se o nunca fosse o passado
e o amanhã fosse nosso 

porque sou refém da memória
e cúmplice das palavras

sou réu da vontade de ter você
nem que seja mais uma vez
como se fosse a única 

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

botão

meu corpo inteiro caberia
dentro do seu

perdão, 
meu corpo é infinito e ínfimo
mal caberia em suas mãos

mas o meu gesto
caberia dizer que cairia 
como uma luva entrando na sua 

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Éden

esse verso a galope
desembestadamente 
incansado

se movendo 
a quaisquer lugar
distante da boca 
e da secura 

- os dromedários 
sentem sede
quando acordam 

esperávamos as rédeas
bastardos 
dessa vida pouca 

nos botando à frente dos bois
com o desejo na mão

torcendo 
para que os dedos

não nos diga que é proibido
ao menos uma vez

colher essa maçã suculenta 
que enfeita teu corpo 

domingo, 7 de fevereiro de 2021

te vejo cavando 
com os dedos 

o buraco
profunda 

guardando uma mágoa 
que não é sua 

e de mais ninguém agora, 

te vejo enfrentando 
o mundo só 

te vejo abandonando 
o mundo

com os mesmos olhos 
que te vi amar

sábado, 6 de fevereiro de 2021

quarta dimensão

tenho medo é de permanecer na luz inerte 

pasma feito uma lâmpada
no canto de um quarto de leitura 

dentro do pavor além da sombra 
e da solidão dos livros
nos quartos apagados de leitura 

tateo a caverna

quem na luminosidade 
ou na ausência dela 

não se olhou no espelho e sequer se viu? 

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

flor de sal

estive disposta 
a demonstrar
delicada 
que o pensamento te incide

suas mãos 
distanciadas
ocultas as linhas
do destino nós costuradas

li nos poemas de Drummond
sobre a solidão 
dos números
e das cores
Van Gogh sorriu 
dizendo adeus

você desfalecia
não apenas na sombra
dos galhos
ou da ressaca
do outono no mar Mediterâneo 

velozes seus dedos
o percurso da estação

vento da paisagem
devagar a face
despida do amanhã 

restaurada pelo
porta retrato

no ardor
da noite introvertida
você o perfil do tempo 
as memórias coberta de flores

nos búzios

o hábito de comer placentas
já não descobre os búzios - coração 
de boi sedento
olham - olhos 
de tartaruga encalhada
não sabem da veia aberta
dentro dessa máquina de perder medidas
nem o teu rival mais conhecido
vira o rosto enquanto a rua você vira 
toma o café da máquina de perder o gosto
de ontem 
você sabe - ou desconfia 
que já nasceu